Thursday, December 11, 2014

Raízes do apartheid


Pedro J. Bondaczuk


O resultado das eleições parlamentares sul-africanas, destinadas apenas para os brancos, veio confirmar tudo o que sempre se disse, e sempre se soube, acerca do regime racista desse país. O “apartheid” jamais será abolido por meios pacíficos, já que a minoria racial da África do Sul tem uma convicção profundamente arraigada da sua pretensa superioridade (mental e religiosa) sobre os nativos. Interpreta o seu domínio sobre os quase 25 milhões de negros do país como sendo uma “missão divina”, algo que não pode, e não deve, ser alterado por ninguém.

Não é o crítico que diz isto ou que tira ilações precipitadas de uma conjuntura, que conhece apenas à distância. Essa idéia está na base de todo o sistema discriminatório, implantado há 39 anos (em 1948), quando o Partido Nacional, que acaba de vencer mais uma eleição, elegendo 122 dos 166 integrantes do novo Parlamento, ascendeu ao poder, liderado por Daniel François Malan.

Mas os conflitos entre os brancos sul-africanos, descendentes dos holandeses (que são chamados de “affrikaners”) e os nativos negros, não vêm dessa época, apesar de que foi a partir daí que a segregação racial foi estabelecida por lei. Esses choques remontam ao século XVII, quando os primitivos europeus estabeleceram uma colônia na Província do Cabo.

O “apartheid” fundamenta-se em três princípios: 1º) A cultura ocidental (embora com o avanço dos meios de comunicação ela já não sirva mais de distintivo para ninguém, tamanha tem sido a sua difusão); 2º) A moralidade cristã (que os negros também têm, já que um expressivo número deles professa a fé anglicana) e 3º) A identidade racial específica, ou seja, a cor da pele.

Mas o próprio Daniel Malan, que implementou a segregação racial, mantendo a parte majoritária da população com a função única de servir de mão-de-obra barata e abundante, explicou o seguinte, acerca deste último item: “A diferença de cor é meramente a manifestação física de dois modos de vida irreconciliáveis”.

O resultado eleitoral divulgado ontem mostra que não era apenas esse líder do Partido Nacional, nem foram outros que o sucederam no correr do tempo (com grau maior ou menor de radicalismo) que pensavam assim. Os quatro milhões de brancos sul-africanos também entendem, em sua grande maioria, a questão dessa forma.

Caso não entendessem, não teriam outorgado tamanha soma de votos aos segregacionistas, chegando o requinte de desbancar os liberais de sua condição de segunda maior bancada no Parlamento. Doravante, tal primazia será dos ultradireitistas, que acham que o atual presidente, Pieter Wilhelm Botha, faz “concessões em demasia aos negros”.

Em 1985, quando foi criada uma câmara para os mestiços e asiáticos, o ex-primeiro-ministro, Hendrick Verwoerd, tentando explicar a razão de não se agir da mesma forma em relação à maioria esmagadora da população (aliás, os donos legítimos desse território, pois seus antepassados residiam lá antes que sequer se cogitasse no nascimento da Holanda no concerto europeu) disse: “O bantu (negro) deve ser orientado para servir sua própria comunidade.. Não há lugar para ele na comunidade européia (branca), além de certos tipos de trabalho braçal”.

Observe-se que a proporção de um para seis, em termos populacionais, em favor dos dominados, não quer dizer muita coisa. Os “affrikaners”, embora em número menor, dispõem, hoje, de um dos aparatos bélicos e repressivos mais formidáveis do mundo em termos de eficiência.

O que deverá ocorrer, mais cedo ou mais tarde, será uma conflagração racial sem precedentes na história, envolvendo não somente os negros da África do Sul, mas os de praticamente todo o continente, solidários com a humilhação de seus irmãos. Por isso, não houve exagero algum de Desmond Tutu quando previu que a noite, sem lua e sem estrelas, estava descendo sobre o seu país. Oxalá estivesse errado...

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 8 de maio de 1987).


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