Tuesday, December 09, 2014

Lembrando de um “amigo espiritual”

Pedro J. Bondaczuk

As amizades espirituais – aquela estima especialíssima que dedicamos a determinadas personalidades que jamais tivemos o privilégio de conhecer pessoalmente (e que, por sua vez, nunca souberam nem mesmo da nossa existência), mas que por um motivo ou por outro, nos são muito caras, familiares e onipresentes –  tendem a ser tão importantes (e às vezes até mais) quanto as que costumo rotular de “presenciais”. Ou seja, daqueles amigos que estão o tempo todo presentes, conosco, para o que der e vier, partilhando nossas angústias, alegrias, sucessos e fracassos, em quem confiamos sem titubeios ou restrições e que consideramos, até, como membros muito queridos da nossa família. Esses casos são mais comuns e corriqueiros do que admitimos. Para mim, ascendem aos milhares; 

Em 11 de abril de 2012 escrevi uma crônica com esse título, cujo primeiro parágrafo é o seguinte: “Vocês já atentaram para o fato de que consideramos determinados escritores – pela identidade que temos com suas idéias, por ideais pelos quais lutam e por sua postura face à vida – amigos, mesmo que jamais tenhamos nos visto, conversado e que sequer eles saibam, ou mesmo desconfiem, da nossa existência? Familiarizamo-nos de tal sorte com eles, que é como se freqüentassem nossa casa, conhecessem nossos gostos e pensamentos, soubessem de nossos problemas e ambições, nos aconselhassem quando conselhos se fizessem necessários, nos repreendessem (com doçura) quando tivéssemos que ser repreendidos e satisfizessem, enfim, todas as necessidades psicológicas, tudo o que esperamos de uma legítima, sólida e intimíssima amizade”.

Nessa crônica referi-me especificamente a escritores, de cuja amizade espiritual tanto me orgulho. Mas estas podem ser de qualquer outra atividade: cantores, compositores, jogadores de futebol, esportistas de qualquer outra modalidade, jornalistas etc.etc.etc. Quando tomamos conhecimento da morte de algum desses “amigos”, ficamos chocados e entristecidos, como se perdêssemos algum companheirão com o qual estivéssemos ainda na véspera. É algo que nunca soube explicar e que, volta e meia, acontece comigo. Lamento essas perdas tanto (desconfio que até mais) que muitos de seus parentes lamentam. O pior é quando tenho que noticiar essas mortes. Isso ocorria com grande freqüência quando eu atuava como editor de jornal. Bem, na verdade, ocorre, ainda hoje, com idêntica intensidade, quando teço estas reflexões diárias que partilho, nos vários espaços da internet em que publico meus textos, quando ocorrem essas perdas de “amigos espirituais".

Um desses momentos tão desagradáveis e traumatizantes ocorreu-me há exatos vinte anos. Foi em um 8 de dezembro de 1994, quando tive que noticiar a morte de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Sim, refiro-me a ele mesmo, ao Tom, ao co-autor de “Garota de Ipanema”, a composição brasileira mais executada em todo o mundo em todos os tempos. Nem preciso dizer que o considerava amigo, aliás, amigão especial, cuja obra esteve presente, de uma forma ou de outra, nos momentos mais memoráveis da minha vida (e, a bem da verdade, ainda está). Eu trabalhava, na época da sua morte, no jornal Correio Popular de Campinas. Era editor de “Brasil”, editoria que acumulava com a de “Internacional” (sempre fui um “workaholic” maluco e incorrigível, o tal “profissional multitarefa”). Tinha, à minha disposição nesse dia, apenas duas páginas para registrar uma vida tão agitada e de tanto sucesso, que mereceria um alentado livro, quando não toda uma coleção, para ser, minimamente, relatada.

Essa foi uma das edições mais sombrias que fiz, justo eu que costumava trabalhar sorrindo, contando anedotas, brincando com colegas de trabalho (repórteres, sub-editores, diagramadores e fotógrafos), pois tinha prazer imenso no que fazia. Bem, nem sempre. A exceção era quando tinha que editar notícias como aquela, daquele 8 de dezembro de 1994, e que não foram poucas ao longo da minha relativamente extensa carreira. Entre as coisas que me vieram à cabeça, na ocasião, estava a edição da morte de outro mito da música popular, ocorrida no mesmo 8 de dezembro, só que catorze anos antes, em 1980. Refiro-me ao assassinato do ex-Beatle John Lennon, na entrada do edifício Dakota, em Nova York, em frente ao Central Park, morto por um fã enlouquecido, chamado Mark David Chapman.

Essa outra edição fiz quando trabalhava em outro jornal de Campinas, o “Diário do Povo” (que hoje já nem circula mais). Foram quatro páginas especiais, inseridas na minha editoria de então, a Internacional. Tratou-se de jornada, sobretudo, estafante, caracterizada pela correria, para não estourar o implacável deadline. Em jornal trabalha-se sempre contra o relógio. Foi uma edição igualmente sombria, mas sem termos de comparação com a que faria catorze anos depois. Afinal, Tom Jobim sempre foi, para mim, mais “íntimo” do que John Lennon, e por uma série de razões, uma das quais o fato de eu nunca ter sido propriamente um “beatlemaníaco”. Já quanto à obra do parceiro preferido de Vinícius de Moraes... Sempre fui (e ainda sou) alucinado, notadamente por suas composições de Bossa Nova, da qual foi um dos pioneiros.

Essas duas mortes tiveram duas coincidências, mas uma porção infinita de diferenças. Os pontos coincidentes foram, apenas, a data em que ocorreram (8 de dezembro) posto que separadas, uma da outra, por 14 anos, e a cidade em que se verificaram: Nova York. Mas John Lennon foi assassinado, com cinco tiros, por um fã enlouquecido. Já Tom Jobim foi vítima de uma parada cardíaca, quando se recuperava de cirurgia para extração de um tumor maligno na bexiga. É certo que se pode mencionar como pontos coincidentes o fato de ambos serem compositores, conhecidos e reverenciados em quase todas as partes do mundo. Mas diferenciavam-se, profundamente, por vidas e comportamentos quase que diametralmente opostos.

Trago estas lembranças à baila, correndo o risco de muitos acharem que não têm nada a ver com Literatura (no meu entendimento têm) para que não se percam. Embora mitos de sua atividade, a memória é sumamente frágil e ambos (infelizmente) começam a ser esquecidos. Quantas composições de John Lennon ou de Tom Jobim vocês ouviram nos últimos dias, ou semanas, ou meses, ou anos? Raras, raríssimas, se não nenhuma, não é mesmo? Vêem? A memória é fragílima. E ambos foram o que foram: mitos, ícones, gênios. Milhões, quiçá bilhões de jovens mundo afora, todavia, sequer sabem, hoje, quem eles foram e que ao menos existiram. Pudera!Não são, como sou, “amigos espirituais” desses astros vencedores (no meu caso, Tom Jobim muito mais do que John Lennon).


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