Lembrando de um “amigo
espiritual”
Pedro
J. Bondaczuk
As amizades espirituais
– aquela estima especialíssima que dedicamos a determinadas personalidades que
jamais tivemos o privilégio de conhecer pessoalmente (e que, por sua vez, nunca
souberam nem mesmo da nossa existência), mas que por um motivo ou por outro,
nos são muito caras, familiares e onipresentes – tendem a ser tão importantes (e às vezes até
mais) quanto as que costumo rotular de “presenciais”. Ou seja, daqueles amigos
que estão o tempo todo presentes, conosco, para o que der e vier, partilhando
nossas angústias, alegrias, sucessos e fracassos, em quem confiamos sem titubeios ou restrições e que consideramos, até,
como membros muito queridos da nossa família. Esses casos são mais comuns e corriqueiros
do que admitimos. Para mim, ascendem aos milhares;
Em 11 de abril de 2012
escrevi uma crônica com esse título, cujo primeiro parágrafo é o seguinte:
“Vocês já atentaram para o fato de que consideramos determinados escritores –
pela identidade que temos com suas idéias, por ideais pelos quais lutam e por
sua postura face à vida – amigos, mesmo que jamais tenhamos nos visto,
conversado e que sequer eles saibam, ou mesmo desconfiem, da nossa existência?
Familiarizamo-nos de tal sorte com eles, que é como se freqüentassem nossa
casa, conhecessem nossos gostos e pensamentos, soubessem de nossos problemas e
ambições, nos aconselhassem quando conselhos se fizessem necessários, nos
repreendessem (com doçura) quando tivéssemos que ser repreendidos e satisfizessem,
enfim, todas as necessidades psicológicas, tudo o que esperamos de uma
legítima, sólida e intimíssima amizade”.
Nessa crônica referi-me
especificamente a escritores, de cuja amizade espiritual tanto me orgulho. Mas
estas podem ser de qualquer outra atividade: cantores, compositores, jogadores
de futebol, esportistas de qualquer outra modalidade, jornalistas etc.etc.etc.
Quando tomamos conhecimento da morte de algum desses “amigos”, ficamos chocados
e entristecidos, como se perdêssemos algum companheirão com o qual estivéssemos
ainda na véspera. É algo que nunca soube explicar e que, volta e meia, acontece
comigo. Lamento essas perdas tanto (desconfio que até mais) que muitos de seus
parentes lamentam. O pior é quando tenho que noticiar essas mortes. Isso
ocorria com grande freqüência quando eu atuava como editor de jornal. Bem, na
verdade, ocorre, ainda hoje, com idêntica intensidade, quando teço estas
reflexões diárias que partilho, nos vários espaços da internet em que publico
meus textos, quando ocorrem essas perdas de “amigos espirituais".
Um desses momentos tão
desagradáveis e traumatizantes ocorreu-me há exatos vinte anos. Foi em um 8 de
dezembro de 1994, quando tive que noticiar a morte de Antonio Carlos Brasileiro
de Almeida Jobim. Sim, refiro-me a ele mesmo, ao Tom, ao co-autor de “Garota de
Ipanema”, a composição brasileira mais executada em todo o mundo em todos os
tempos. Nem preciso dizer que o considerava amigo, aliás, amigão especial, cuja
obra esteve presente, de uma forma ou de outra, nos momentos mais memoráveis da
minha vida (e, a bem da verdade, ainda está). Eu trabalhava, na época da sua
morte, no jornal Correio Popular de Campinas. Era editor de “Brasil”, editoria
que acumulava com a de “Internacional” (sempre fui um “workaholic” maluco e
incorrigível, o tal “profissional multitarefa”). Tinha, à minha disposição
nesse dia, apenas duas páginas para registrar uma vida tão agitada e de tanto
sucesso, que mereceria um alentado livro, quando não toda uma coleção, para
ser, minimamente, relatada.
Essa foi uma das
edições mais sombrias que fiz, justo eu que costumava trabalhar sorrindo,
contando anedotas, brincando com colegas de trabalho (repórteres, sub-editores,
diagramadores e fotógrafos), pois tinha prazer imenso no que fazia. Bem, nem
sempre. A exceção era quando tinha que editar notícias como aquela, daquele 8
de dezembro de 1994, e que não foram poucas ao longo da minha relativamente
extensa carreira. Entre as coisas que me vieram à cabeça, na ocasião, estava a
edição da morte de outro mito da música popular, ocorrida no mesmo 8 de
dezembro, só que catorze anos antes, em 1980. Refiro-me ao assassinato do
ex-Beatle John Lennon, na entrada do edifício Dakota, em Nova York, em frente
ao Central Park, morto por um fã enlouquecido, chamado Mark David Chapman.
Essa outra edição fiz
quando trabalhava em outro jornal de Campinas, o “Diário do Povo” (que hoje já
nem circula mais). Foram quatro páginas especiais, inseridas na minha editoria
de então, a Internacional. Tratou-se de jornada, sobretudo, estafante,
caracterizada pela correria, para não estourar o implacável deadline. Em jornal
trabalha-se sempre contra o relógio. Foi uma edição igualmente sombria, mas sem
termos de comparação com a que faria catorze anos depois. Afinal, Tom Jobim
sempre foi, para mim, mais “íntimo” do que John Lennon, e por uma série de
razões, uma das quais o fato de eu nunca ter sido propriamente um
“beatlemaníaco”. Já quanto à obra do parceiro preferido de Vinícius de
Moraes... Sempre fui (e ainda sou) alucinado, notadamente por suas composições
de Bossa Nova, da qual foi um dos pioneiros.
Essas duas mortes
tiveram duas coincidências, mas uma porção infinita de diferenças. Os pontos
coincidentes foram, apenas, a data em que ocorreram (8 de dezembro) posto que separadas,
uma da outra, por 14 anos, e a cidade em que se verificaram: Nova York. Mas
John Lennon foi assassinado, com cinco tiros, por um fã enlouquecido. Já Tom
Jobim foi vítima de uma parada cardíaca, quando se recuperava de cirurgia para
extração de um tumor maligno na bexiga. É certo que se pode mencionar como
pontos coincidentes o fato de ambos serem compositores, conhecidos e
reverenciados em quase todas as partes do mundo. Mas diferenciavam-se,
profundamente, por vidas e comportamentos quase que diametralmente opostos.
Trago estas lembranças
à baila, correndo o risco de muitos acharem que não têm nada a ver com
Literatura (no meu entendimento têm) para que não se percam. Embora mitos de
sua atividade, a memória é sumamente frágil e ambos (infelizmente) começam a
ser esquecidos. Quantas composições de John Lennon ou de Tom Jobim vocês
ouviram nos últimos dias, ou semanas, ou meses, ou anos? Raras, raríssimas, se
não nenhuma, não é mesmo? Vêem? A memória é fragílima. E ambos foram o que
foram: mitos, ícones, gênios. Milhões, quiçá bilhões de jovens mundo afora,
todavia, sequer sabem, hoje, quem eles foram e que ao menos existiram.
Pudera!Não são, como sou, “amigos espirituais” desses astros vencedores (no meu
caso, Tom Jobim muito mais do que John Lennon).
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