Experiência
e memória
Pedro J. Bondaczuk
O
escritor Elias Canetti observou que "a humanidade só está indefesa quando
não mais possui experiência nem memória". Se essas duas condições são tão importantes no plano coletivo, sua
importância é muito maior no aspecto individual. Ou seja, na vida de cada um de
nós. Em nosso cotidiano. Em nossos amores. Nos relacionamentos sociais que
mantivermos, nas profissões que exercermos, nos ideais que acalentarmos. É o
tal confronto entre teoria e prática que nem deveria haver. O ideal, óbvio, é
que contemos com ambas condições e sempre. Isoladas, cada qual tem evidente
importância que, no entanto, não é igual. Se tivermos que optar por uma das
duas (e na vida, não raro, somos forçados a isso), qual delas você acha que se
deva preferir? O saber fazer algo, sem, todavia, nunca ter feito, ou executar
seja lá o que for já tendo executado isso? Eu optaria pela segunda. Ou seja,
pela experiência.
Durante
muito tempo, no correr do relativamente curto processo civilizatório do homem,
o acervo de técnica, arte e cultura, gerado por indivíduos excepcionais,
dotados, sobretudo, de intuição e clarividência, foi preservado mediante,
unicamente, a transmissão oral, de uma geração a outra. No "meio do
caminho", claro, muita coisa se perdeu por esse rústico processo e outro
tanto se deturpou. Por que? Porque nem tudo o que estava sendo transmitido por
esse precaríssimo meio já havia sido “executado”, ou seja, posto em prática,
pelos encarregados dessa transmissão. Eles tinham memória, mas não experiência.
Hoje,
os meios de preservação de conhecimentos são infinitamente mais eficientes, por
causa da linguagem escrita, da eletrônica, dos audiovisuais e dos gigantescos
bancos de memória. Há, é certo, a barreira da diferença idiomática, já que o
problema das distâncias foi superado. Esta, todavia, também será, com certeza,
vencida, com a universalização de determinados idiomas (em especial o inglês
ou, quem sabe, o mandarim) e com a tradução simultânea por computador, o que é
cada vez mais viável e acessível. Ou, quem sabe, com futura uniformização,
padronização, unificação da linguagem em todo o mundo, o que me parece, ainda,
bastante improvável, posto que não impossível, mas que seria ideal, o que
facilitaria a preservação e a utilização, livre e universal, do conhecimento
humano. Dessa forma, a humanidade não correria o risco de ficar indefesa, caso,
claro, não se destruísse antes, pela competição e por causa de seu estúpido
egoísmo. Não, pelo menos, no quesito memória.
Todavia,
para que nada, rigorosamente nada se perca, é necessário que haja muitas
pessoas que já “tenham feito” o que se pretende preservar. Que não se limitem a
conservar somente teorias, ou seja, que não se dê atenção exclusiva ao “saber
fazer” posto que sem nunca ter feito (a memória). Que, além disso, muitos já
“tenham feito” (a experiência) o que se
deseja conservar com tanto zelo para as próximas gerações. E o que isso tudo
tem a ver conosco, escritores (ou aspirantes a tal)? Tudo! Nossos livros, para
adquirirem a desejável credibilidade, têm que refletir nossa experiência
pessoal. Querem um exemplo? Como poderei ser convincente ao escrever sobre o
amor se nunca tiver amado? Baseado em experiências alheias? Mas será que
saberei, de fato, o que se passou na mente de um amante qualquer se eu nunca
tiver amado? Poderei até escrever textos belíssimos a propósito, inclusive
verossímeis. E estes podem agradar o intelecto dos leitores. Mas se não
despertar sua sensibilidade, se não emocioná-lo, nada feito. O que escrever não
tardará a cair no esquecimento, que é o que não quero, caso contrário sequer
escreveria o que escrevi..
Como
posso escrever, de forma convincente, sobre o conflito de sentimentos e emoções
que um sujeito apaixonado sente diante da simples presença da mulher amada, se
jamais amei nenhuma e, portanto, não senti o que me proponho a descrever? Não
posso! Não, pelo menos, de forma a convencer quem esteja vivendo ou já tenha
vivido essa transcendental experiência. Posso até achar que “sei fazer” isso,
mesmo que nunca tenha feito. Mas saberei mesmo? Como ter essa certeza? Como
saber o que sente de fato um amante rejeitado em caso, por exemplo, de ser
traído e preterido por outro, se nunca tiver passado por essa terrível
situação? Posso até especular a respeito. Mas saber, saber mesmo, não saberei
se não tiver experiência pessoal a propósito.
Sempre
que sou consultado por algum aspirante a escritor – e, não sei explicar porque,
sou muito – antes de ler seus respectivos originais, para emitir opinião,
invariavelmente pergunto: “Você já viveu situações pelo menos parecidas com as
quais envolve seus personagens? O quanto, em seu enredo, tem a ver com sua
vida?” Caso a resposta seja “nada”, nem preciso ler (embora nunca tenha deixado
de fazê-lo) o que tal postulante a escritor escreveu. Invariavelmente, o texto
até que está bem colocado, gramaticalmente correto, com estilo agradável. As
metáforas são pertinentes e criativas (não raro, brilhantes), e o enredo é
dinâmico. Mas... seus livros não convencem. Não emocionam.
Nunca
errei em minhas avaliações. Recomendo, nestas circunstâncias: “Escreva sobre o
que você conhece, sobre o que tem certeza, por já haver ‘vivido’ e não se
limite a abordar só o que ‘observou’”.
Claro que a pesquisa, a informação, o conhecimento teórico etc. são
importantes. Mas, apenas, como complementos de uma obra literária consistente e
imortal.. O cerne, a alma, o espírito dela, para não se esvair segundos após a
leitura, é a experiência. É não somente o “saber fazer” (ou achar que sabe),
mas o já “ter feito” e, por isso, saber, de fato, “como se faz”.
Alerto
que não estou descartando a teoria, que é necessária, também, para um bom
livro. Só estou alertando que ela é insuficiente se for desacompanhada da
experiência. E isso vale para todas as atividades humanas. O grande filósofo
francês da segunda metade do século XX, Paul Ricoeur, definiu com precisão o
papel da Literatura em nossas vidas:
“Fabricando mitos, intrigas e metáforas, a imaginação dá forma à
experiência humana”. Como, todavia, o escritor poderá fazer isso se for inexperiente. Como exercerá com
competência sua função se não tiver a “matéria-prima” para “fabricar mitos,
intrigas e metáforas”, com o uso da imaginação? E essa, claro, não é outra que
não a EXPERIÊNCIA!!!!
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