Monday, December 01, 2014

Experiência e memória

Pedro J. Bondaczuk

O escritor Elias Canetti observou que "a humanidade só está indefesa quando não mais possui experiência nem memória". Se essas duas condições são  tão importantes no plano coletivo, sua importância é muito maior no aspecto individual. Ou seja, na vida de cada um de nós. Em nosso cotidiano. Em nossos amores. Nos relacionamentos sociais que mantivermos, nas profissões que exercermos, nos ideais que acalentarmos. É o tal confronto entre teoria e prática que nem deveria haver. O ideal, óbvio, é que contemos com ambas condições e sempre. Isoladas, cada qual tem evidente importância que, no entanto, não é igual. Se tivermos que optar por uma das duas (e na vida, não raro, somos forçados a isso), qual delas você acha que se deva preferir? O saber fazer algo, sem, todavia, nunca ter feito, ou executar seja lá o que for já tendo executado isso? Eu optaria pela segunda. Ou seja, pela experiência.
  
Durante muito tempo, no correr do relativamente curto processo civilizatório do homem, o acervo de técnica, arte e cultura, gerado por indivíduos excepcionais, dotados, sobretudo, de intuição e clarividência, foi preservado mediante, unicamente, a transmissão oral, de uma geração a outra. No "meio do caminho", claro, muita coisa se perdeu por esse rústico processo e outro tanto se deturpou. Por que? Porque nem tudo o que estava sendo transmitido por esse precaríssimo meio já havia sido “executado”, ou seja, posto em prática, pelos encarregados dessa transmissão. Eles tinham memória, mas não experiência.

Hoje, os meios de preservação de conhecimentos são infinitamente mais eficientes, por causa da linguagem escrita, da eletrônica, dos audiovisuais e dos gigantescos bancos de memória. Há, é certo, a barreira da diferença idiomática, já que o problema das distâncias foi superado. Esta, todavia, também será, com certeza, vencida, com a universalização de determinados idiomas (em especial o inglês ou, quem sabe, o mandarim) e com a tradução simultânea por computador, o que é cada vez mais viável e acessível. Ou, quem sabe, com futura uniformização, padronização, unificação da linguagem em todo o mundo, o que me parece, ainda, bastante improvável, posto que não impossível, mas que seria ideal, o que facilitaria a preservação e a utilização, livre e universal, do conhecimento humano. Dessa forma, a humanidade não correria o risco de ficar indefesa, caso, claro, não se destruísse antes, pela competição e por causa de seu estúpido egoísmo. Não, pelo menos, no quesito memória.

Todavia, para que nada, rigorosamente nada se perca, é necessário que haja muitas pessoas que já “tenham feito” o que se pretende preservar. Que não se limitem a conservar somente teorias, ou seja, que não se dê atenção exclusiva ao “saber fazer” posto que sem nunca ter feito (a memória). Que, além disso, muitos já “tenham feito” (a experiência) o  que se deseja conservar com tanto zelo para as próximas gerações. E o que isso tudo tem a ver conosco, escritores (ou aspirantes a tal)? Tudo! Nossos livros, para adquirirem a desejável credibilidade, têm que refletir nossa experiência pessoal. Querem um exemplo? Como poderei ser convincente ao escrever sobre o amor se nunca tiver amado? Baseado em experiências alheias? Mas será que saberei, de fato, o que se passou na mente de um amante qualquer se eu nunca tiver amado? Poderei até escrever textos belíssimos a propósito, inclusive verossímeis. E estes podem agradar o intelecto dos leitores. Mas se não despertar sua sensibilidade, se não emocioná-lo, nada feito. O que escrever não tardará a cair no esquecimento, que é o que não quero, caso contrário sequer escreveria o que escrevi..

Como posso escrever, de forma convincente, sobre o conflito de sentimentos e emoções que um sujeito apaixonado sente diante da simples presença da mulher amada, se jamais amei nenhuma e, portanto, não senti o que me proponho a descrever? Não posso! Não, pelo menos, de forma a convencer quem esteja vivendo ou já tenha vivido essa transcendental experiência. Posso até achar que “sei fazer” isso, mesmo que nunca tenha feito. Mas saberei mesmo? Como ter essa certeza? Como saber o que sente de fato um amante rejeitado em caso, por exemplo, de ser traído e preterido por outro, se nunca tiver passado por essa terrível situação? Posso até especular a respeito. Mas saber, saber mesmo, não saberei se não tiver experiência pessoal a propósito.

Sempre que sou consultado por algum aspirante a escritor – e, não sei explicar porque, sou muito – antes de ler seus respectivos originais, para emitir opinião, invariavelmente pergunto: “Você já viveu situações pelo menos parecidas com as quais envolve seus personagens? O quanto, em seu enredo, tem a ver com sua vida?” Caso a resposta seja “nada”, nem preciso ler (embora nunca tenha deixado de fazê-lo) o que tal postulante a escritor escreveu. Invariavelmente, o texto até que está bem colocado, gramaticalmente correto, com estilo agradável. As metáforas são pertinentes e criativas (não raro, brilhantes), e o enredo é dinâmico. Mas... seus livros não convencem. Não emocionam.

Nunca errei em minhas avaliações. Recomendo, nestas circunstâncias: “Escreva sobre o que você conhece, sobre o que tem certeza, por já haver ‘vivido’ e não se limite a abordar só o que  ‘observou’”. Claro que a pesquisa, a informação, o conhecimento teórico etc. são importantes. Mas, apenas, como complementos de uma obra literária consistente e imortal.. O cerne, a alma, o espírito dela, para não se esvair segundos após a leitura, é a experiência. É não somente o “saber fazer” (ou achar que sabe), mas o já “ter feito” e, por isso, saber, de fato, “como se faz”.

Alerto que não estou descartando a teoria, que é necessária, também, para um bom livro. Só estou alertando que ela é insuficiente se for desacompanhada da experiência. E isso vale para todas as atividades humanas. O grande filósofo francês da segunda metade do século XX, Paul Ricoeur, definiu com precisão o papel da Literatura em nossas vidas:  “Fabricando mitos, intrigas e metáforas, a imaginação dá forma à experiência humana”. Como, todavia, o escritor poderá fazer  isso se for inexperiente. Como exercerá com competência sua função se não tiver a “matéria-prima” para “fabricar mitos, intrigas e metáforas”, com o uso da imaginação? E essa, claro, não é outra que não a EXPERIÊNCIA!!!!


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