Nem a gregos e nem a
troianos
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “1984”, de
George Orwell, volta e meia volta à baila, tantos anos após ser escrito e
publicado. A imensa maioria das críticas, feitas em ensaios, biografias e
outros tipos de análise (quer literária, quer política ou ideológica), é
negativa. Consiste tanto de ataques ao estilo do autor quanto, e
principalmente, ao seu próprio conteúdo. Ou seja, a mensagem que pretendeu
transmitir. Nessa onda, de quase linchamento, a própria figura do escritor não
é poupada. Há quem o acuse, por exemplo, de jamais ter sido socialista, mas
mero “oportunista ideológico”. Outros tantos são mais complacentes com ele.
Entendem, sobretudo, que Orwell acreditava em um “socialismo utópico”,
democrático, que não existe e nunca existiu em nenhum lugar, qualquer coisa
parecida com a “glasnost” e a “perestroika” que Mikhail Gorbachev tentou
implantar nos anos 80 e início dos 90 do século XX, no afã de salvar (em vão) a
União Soviética da desagregação.
Nessa querela
ideológica, que volta e meia é renovada, sobretudo em jornais e revistas
sectários, o que menos se analisa, todavia, é o conteúdo de “1984”. A ditadura,
de que o autor trata, ressalte-se, tanto pode ser de esquerda, quanto de
direita. Orwell não dá a menor pista a propósito. Não identifica (e sequer
sugere) em qual dos dois extremos estava pensando ao compor o enredo. É esta
ambigüidade que o torna alvo constante tanto de uma vertente, quanto da outra.
Ou seja, obtém uma quase unanimidade de condenações, sob os mais variados
argumentos, quer de intelectuais de esquerda, quer dos de direita, com um
extremo ideológico acusando o outro de ser o verdadeiro foco do escritor, ou
seja, o “implantador” da ditadura absolutíssima tratada no livro.
Orwell escreveu essa
obra em 1948, embora fosse publicada um ano depois, em 1949. Deu-lhe um título
(propositalmente?) ambíguo, sugerindo o tempo em que a “Oceania” que criou
surgiria no panorama mundial, sob o domínio absolutíssimo do “Big Brother” que,
em sua determinação de controlar tudo, rigorosamente tudo na vida de seus
cidadãos, controlaria, inclusive, e principalmente, seus pensamentos. Pensou em
uma época que não fosse nem tão distante
daquela em que vivia e nem muito próxima. O que fez? Simplesmente inverteu os
dois últimos algarismos do ano em que escreveu o livro: 1948 virou “1984”.
Das inúmeras acusações
de que George Orwell foi (e volta e meia continua sendo) alvo, a mais
contundente foi feita pela jornalista e historiadora britânica Frances Stonor
Saunders. Em seu livro “Quem pagou a conta – A CIA na Guerra Fria da Cultura”
(lançado no Brasil em 2008 pela Editora Record, com 556 páginas e tradução de
Vera Ribeiro), ela o acusa de ter sido delator, ou seja, dedo-duro. Afirma que
o autor de “1984” entregou, ao Departamento de Pesquisa de Informações (IRD), o
braço secreto do Ministério de Relações Exteriores da Inglaterra, em 1949, uma
lista que denunciava “35 pessoas como simpatizantes, ou como suspeitas de serem
testas-de-ferro ou ‘adeptas’ do comunismo”.
A dita relação conteria
nomes de intelectuais dos mais ilustres, como Kingsley Martin, Michael
Redgrave, John Steinbeck, Paul Robenson, Upton Sinclair, Richard Rees, J. B.
Priestley, George Padmore, Stephen Spender e Tom Driberg (estes dois últimos
lembrados por serem, supostamente, homossexuais), entre outros. Saunders admite
que a lista foi feita como uma espécie de “brincadeira” de Orwell com os
amigos. Fica claro, portanto, que ela de fato existiu e que foi feita pelo
acusado. A dúvida que fica é se ele a entregou ou não ao IRD. Da minha parte,
suspeito que sim.
O biógrafo do autor de
“1984”, Bernard Crick, praticamente confirma o ato de “deduragem” ao
justificar: “Orwell não diferiu dos cidadãos responsáveis de hoje que
transmitem ao esquadrão antiterrorista informações a respeito de pessoas de
suas relações que eles acreditam serem terroristas do IRA. Essa era uma época
vista como perigosa, o fim dos anos quarenta”. Caso o acusado tenha, realmente,
agido assim, considero a atitude sumamente condenável, até porque estaria
expondo pessoas de suas relações que pensavam exatamente como ele. Dêem o nome
que quiserem dar a esse ato – caso tenha sido mesmo praticado – mas, para mim,
é traição explícita.
Nesse aspecto concordo
com o jornalista, escritor e radialista inglês, Peregrine Worsthorne, que
declarou: “Um ato desonroso não se torna honrado pelo simples fato de ter sido
cometido por George Orwell”. E Saunders arrematou: “Ele demonstrou haver
confundido o papel do intelectual com o do policial”. Diz o surrado clichê que
“ninguém consegue agradar, simultaneamente, a gregos e troianos” E não consegue mesmo. O maior erro de George
Orwell, na concepção de “1984”, foi o de não identificar a ideologia de “Big
Brother”. Caso o fizesse, certamente seria, sim, alvo de ataques, mas de apenas
uma das ideologias extremistas. Todavia, não uniria as duas no sentido de
tentarem destruir não apenas sua obra, mas, principalmente, sua reputação. Do
jeito que agiu, não agradou “nem a gregos e nem a troianos”.
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