Saturday, December 27, 2014

Marcha para o abismo


Pedro J. Bondaczuk


A violência, que há 12 anos toma conta do Líbano, vem transformando essa sociedade nacional, que já chegou a ser chamada de a Suíça do Oriente Médio, pelo seu alto grau de politização e pela sua grande prosperidade, em um amontoado caótico de interesses contrariados. Tornou-se um câncer pavoroso a corroer as entranhas nacionais. Provocou um número incontável de cenas dantescas, que se tornaram símbolos de toda uma década, com explosões de carros-bombas em escolas, em supermercados e em conjuntos residenciais.

Hoje, os tiroteios, os seqüestros e os assassinatos transformaram-se numa espécie de vício, numa prática que, de tão usada, desgraçadamente virou rotineira, aceita por todos como algo absolutamente normal.

Ontem, a violência sectária, o fanatismo e a estupidez desregrada atingiras as raias da loucura, ceifando um dos poucos homens públicos desse país que ainda mantinha a compostura, em meio à sangria desatada e à rápida deterioração econômica que tomaram conta do Líbano em todo este longo e trágico período da sua história (que foi, outrora, das mais exemplares).

Das atuais figuras de projeção nessa sociedade nacional destroçada, Rashid Karami era a única que não tinha nenhuma milícia particular para ditar a sua vontade à força. Não dispunha de nenhum bando armado, nenhuma guerrilha, nenhum grupo de assassinos a soldo, como é o caso dos chamados senhores da guerra, cuja intransigência está destruindo o país.

O primeiro-ministro assassinado também não tinha vínculos com nenhuma das facções em conflito. É verdade que sempre procurou preservar a integridade física dos irmãos de fé, a seita muçulmana sunita. Mas jamais pregou o confronto suicida, multiplicador de ódios e de vinganças destruidoras.

Seu argumento era outro. Era a palavra fluente e sensata de alguém acostumado aos embates parlamentares, das idéias e dos debates. Era o da inteligência, da perspicácia, do diálogo e da negociação. Não foi por acaso que procurou seguir os passos do pai, que havia sido um dos primeiros chefes de governo de um Líbano independente e onde comunidades heterogêneas davam magníficos exemplos de convivência e de fraternidade.

Por isso, por entender que apenas através da permanente prática da negociação o país continuaria sendo a sociedade exemplar que sempre foi, Karami dedicou 36, dos seus 65 anos de vida, à política. Foi primeiro-ministro por dez vezes. E sempre em situações difíceis, às vezes até desesperadoras, da vida nacional.

Por essa razão, chegou a se transformar numa espécie de símbolo do Líbano. Sempre que estouravam crises (aparentemente insolúveis), todas as vezes que as paixões afloravam e que determinadas pessoas ou certos grupos buscavam sobrepor interesses pessoais aos da população, os libaneses não perdiam a tranqüilidade. Bastava que se convocasse esse hábil homem público e, em pouco tempo, lá estava um novo ministério composto, de maneira rápida e competente, agradando a gregos e troianos.

Por esta razão, tem um certo laivo de injustiça a observação, feita ontem, pelo chanceler israelense, Shimon Peres, sobre a morte do primeiro-ministro libanês. Ou seja, a de que ele teria sido colhido pelas forças do obscurantismo que estimulou. Muito pelo contrário!

Karami quedou vencido pelo inimigo que tanto procurou manietar e que acabou sendo impotente de cumprir essa tarefa. Que o assassinato desse homem público abra os olhos de cada cidadão, de cada político, de cada chefe de milícia no Líbano, para que eles vejam o despenhadeiro para o qual o país caminha. Que, em sua memória, se tente, finalmente, estabelecer aquele diálogo nacional tantas vezes anunciado, mas jamais empreendido com seriedade e determinação.

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 2 de junho de 1987).

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