Marcha para o abismo
Pedro J.
Bondaczuk
A violência, que há 12 anos toma conta do Líbano, vem
transformando essa sociedade nacional, que já chegou a ser chamada de a Suíça
do Oriente Médio, pelo seu alto grau de politização e pela sua grande
prosperidade, em um amontoado caótico de interesses contrariados. Tornou-se um
câncer pavoroso a corroer as entranhas nacionais. Provocou um número incontável
de cenas dantescas, que se tornaram símbolos de toda uma década, com explosões
de carros-bombas em escolas, em supermercados e em conjuntos residenciais.
Hoje, os tiroteios, os seqüestros
e os assassinatos transformaram-se numa espécie de vício, numa prática que, de
tão usada, desgraçadamente virou rotineira, aceita por todos como algo
absolutamente normal.
Ontem, a violência sectária, o
fanatismo e a estupidez desregrada atingiras as raias da loucura, ceifando um
dos poucos homens públicos desse país que ainda mantinha a compostura, em meio
à sangria desatada e à rápida deterioração econômica que tomaram conta do
Líbano em todo este longo e trágico período da sua história (que foi, outrora,
das mais exemplares).
Das atuais figuras de projeção
nessa sociedade nacional destroçada, Rashid Karami era a única que não tinha
nenhuma milícia particular para ditar a sua vontade à força. Não dispunha de
nenhum bando armado, nenhuma guerrilha, nenhum grupo de assassinos a soldo,
como é o caso dos chamados senhores da guerra, cuja intransigência está
destruindo o país.
O primeiro-ministro assassinado
também não tinha vínculos com nenhuma das facções em conflito. É verdade que
sempre procurou preservar a integridade física dos irmãos de fé, a seita
muçulmana sunita. Mas jamais pregou o confronto suicida, multiplicador de ódios
e de vinganças destruidoras.
Seu argumento era outro. Era a
palavra fluente e sensata de alguém acostumado aos embates parlamentares, das
idéias e dos debates. Era o da inteligência, da perspicácia, do diálogo e da
negociação. Não foi por acaso que procurou seguir os passos do pai, que havia
sido um dos primeiros chefes de governo de um Líbano independente e onde
comunidades heterogêneas davam magníficos exemplos de convivência e de
fraternidade.
Por isso, por entender que apenas
através da permanente prática da negociação o país continuaria sendo a sociedade
exemplar que sempre foi, Karami dedicou 36, dos seus 65 anos de vida, à
política. Foi primeiro-ministro por dez vezes. E sempre em situações difíceis,
às vezes até desesperadoras, da vida nacional.
Por essa razão, chegou a se
transformar numa espécie de símbolo do Líbano. Sempre que estouravam crises
(aparentemente insolúveis), todas as vezes que as paixões afloravam e que
determinadas pessoas ou certos grupos buscavam sobrepor interesses pessoais aos
da população, os libaneses não perdiam a tranqüilidade. Bastava que se
convocasse esse hábil homem público e, em pouco tempo, lá estava um novo
ministério composto, de maneira rápida e competente, agradando a gregos e
troianos.
Por esta razão, tem um certo
laivo de injustiça a observação, feita ontem, pelo chanceler israelense, Shimon
Peres, sobre a morte do primeiro-ministro libanês. Ou seja, a de que ele teria
sido colhido pelas forças do obscurantismo que estimulou. Muito pelo contrário!
Karami quedou vencido pelo
inimigo que tanto procurou manietar e que acabou sendo impotente de cumprir
essa tarefa. Que o assassinato desse homem público abra os olhos de cada
cidadão, de cada político, de cada chefe de milícia no Líbano, para que eles
vejam o despenhadeiro para o qual o país caminha. Que, em sua memória, se
tente, finalmente, estabelecer aquele diálogo nacional tantas vezes anunciado,
mas jamais empreendido com seriedade e determinação.
(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 2
de junho de 1987).
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