Wednesday, December 24, 2014

Epopéia para materializar uma idéia

Pedro J. Bondaczuk

A produção do romance “1984” exigiu tamanho esforço de George Orwell, seu autor, que se diz, em muitos círculos (e sou induzido a concordar com essa afirmação), que o livro “matou” o escritor. Não literalmente, óbvio. “Mas como?!”, perguntará, atônito, o leitor (como eu perguntei um dia), achando a afirmação exagerada. Bem, reitero, ela não deve ser interpretada literalmente. Exageros a parte, uma coisa não se pode negar: a redação dessa obra levou o autor a se descuidar da saúde, já bastante fragilizada (ele tinha tuberculose em estado adiantado) e a não buscar o devido tratamento. E esse descuido... custou-lhe a vida. Foi, por isso, uma epopéia para a materialização de uma idéia. Essa história, que poucos conhecem, é contada, em detalhes, em um primoroso texto do editor do semanário britânico “The Observer”, Robert McCrum, publicado no Brasil pela revista “Bula”, com tradução de Amanda Gorski.

Os comentários que me proponho a fazer a propósito baseiam-se em informações colhidas nesse magnífico ensaio. O livro “1984” foi escrito em 1946, na fazenda do editor David Astor, que a emprestou a George Orwell, para que ele tivesse o desejável isolamento para escrever em paz, sem que fosse interrompido por ninguém. Ocorre que essa propriedade ficava em uma ilha isolada da Escócia, chamada Jura, de clima inclemente, impróprio, portanto, para uma pessoa saudável, imaginem para um portador de tuberculose, e ainda por cima em estágio avançado! Para complicar, o inverno de 1946/1947 foi dos mais rigorosos do século XX na Europa.

McCrum observa a propósito: “Ali estava um escritor inglês, desesperadamente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua imaginação em uma casa escocesa localizada em meio aos resquícios da Segunda Guerra”. Bem, para escrever o local até que poderia ser considerado apropriado, desde que nada faltasse ao solitário hóspede. E que este seguisse, à risca, as recomendações médicas. Mas como fazer que isso ocorresse se não havia quem o “controlasse”? Sim, como? Ou quem o servisse? Ou quem lhe fizesse companhia nos raros momentos em que não estivesse escrevendo?

McCrum informa que o hóspede, naquela casa distante, em uma ilha tão remota, e gelada, não tinha, sequer, o essencial para uma vida razoavelmente confortável. Escreve: “Orwell, um cavalheiro, não apegado às coisas mundanas, chegou apenas com um saco de dormir, uma mesa, um par de cadeiras e alguns potes e panelas”. Não somente não tinha o básico para uma vida – se não confortável, pelo menos razoavelmente “decente” –  como não contava com o mínimo de equipamentos, hoje imprescindíveis a qualquer escritor, para realizar a tarefa a que se propôs.

Não levou consigo nem arquivos, nem anotações, nem livros para consulta e nem, sequer, um reles dicionário, para dirimir eventuais dúvidas semânticas, dessas que todos temos vez ou outra, em momentos de apuro, Já nem penso nas facilidades modernas, essas que hoje não conseguimos mais dispensar e muito menos prescindir, como um computador pessoal, por exemplo. Essa maquininha genial, aliás, na época sequer existia. Portanto, não havia internet, Google, Wikipédia e tudo o mais que viabiliza hoje qualquer idéia que venhamos a ter, por mais complexa que possa ser, à disposição de Orwell. Tinha, apenas, como o “máximo de modernidade”, uma máquina de escrever, que já nem era tão nova assim, e nada mais. Você, leitor, que eventualmente seja, também, escritor, conseguiria produzir um livro, pelo menos aceitável, naquelas circunstâncias? E, ainda mais: teria capacidade de escrever uma obra-prima, como “1984”? E mais ainda: conseguiria essa façanha tendo que trabalhar com febre e tossindo a não mais poder? Eu jamais conseguiria!!!
  
David Astor, dono do “The Observer”, fora patrão de Orwell, que havia trabalhado nesse jornal desde 1942. Primeiro, atuou como revisor de livros e depois, como correspondente de guerra. O editor tinha grande apreço e imensa admiração por seu ex-funcionário e estava disposto a fazer de tudo para que este, finalmente, escrevesse o tal livro que sempre dizia que “tinha na cabeça há tempos”, desde 1944. Aliás, até antes disso: desde a guerra civil espanhola em que lutou, engajado na Brigada Internacional em defesa dos republicanos.

O título, originalmente pensado para a obra, não era “1984” e nem nada parecido; Era “O último homem da Europa”. Robert McCrum observa, a respeito da concepção da história: “Esse romance, que tem algo da ficção distópica de Yevgeny Zamyatin, provavelmente começou a adquirir uma forma definitiva durante o período de 1943 e 1944, tempo no qual ele e sua esposa Eileen adotaram seu único filho, Richard”. E aduz: “O próprio Orwell alegou ter se inspirado com a reunião dos líderes dos Aliados na Conferência de Teerã, em 1944”. E por que, especificamente, esse encontro o inspirou e não outro fato qualquer da Segunda Guerra Mundial? O escritor Isaac Deutscher, grande amigo do autor de “1984”, explica melhor o motivo. Afirma que Orwell estava “convencido de que Stalin, Churchill e Roosevelt, conscientemente, traçaram o mapa para dividir o mundo” nessa Conferência de Teerã.


Muito se especula sobre qual ditador inspirou o personagem “Big Brother”. Li várias especulações assegurando que foi o soviético Josef Stalin. Orwell, todavia, nunca confirmou essa hipótese. Deu a entender que essa figura assustadora e terrível, que “ninguém nunca viu”, tinha um pouco de todos os tiranos do mundo, quer de esquerda, quer de direita. Era um pouco Hitler, outro tanto Mussolini com traços aqui e ali de inúmeros outros ditadores de tantos lugares e tempos. E tinha muito de Stalin também, óbvio. Para mim, a história de como nasceu “1984” rivaliza, se não supera, o próprio enredo dessa obra-prima do século XX. Merece, portanto, ser contada.

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