Facilitando o trabalho
do Big Brother
Pedro
J. Bondaczuk
A crítica mais
frequente que leio, e que ouço em conversas com intelectuais, a propósito do
livro “1984”, de George Orwell, se refere à suposta impossibilidade de haver
uma ditadura tão absoluta e onipresente como a de seu enredo. Cá para nós: será
que é impossível mesmo? Essa é uma dúvida que sempre tive (e que ainda tenho),
diante de tudo o que vejo e que leio, todos os dias, sobre acontecimentos mundo
afora. Estou convicto, por uma série de razões, que a realidade tende a ser
muito mais surpreendente e absurda do que a mais delirante fantasia, dessas que
são frutos de exacerbada imaginação. Não me surpreenderia, pois, caso houvesse,
algum dia e em algum lugar, uma ditadura pelo menos “parecida”, mesmo que
remotamente, com a criada por Orwell em seu livro.
Aliás, a esse propósito,
conversando, dia desses, com um amigo, este levantou uma tese que a princípio
me pareceu digna de Kafka, tão absurda me soou. Depois, refletindo a respeito,
quase me convenci que ela até fazia certo sentido. Meu interlocutor, com o qual
travo, volta e meia, ácidos e duros confrontos – mas somente o de idéias, por
pensarmos de forma diametralmente oposta no que diz respeito à realidade e que,
mesmo assim, jamais permitimos que nossa amizade seja sequer levemente
arranhada, quanto mais estremecida – disse que a ditadura “criada” por Orwell,
no seu “1984”, já existe, embora não a percebamos.
“Mas como?!”,
perguntei-lhe, já o contestando no simples tom de voz com que fiz a pergunta,
simultaneamente exclamativa. Na hora, nem mesmo quis refutar com argumentos tamanho
disparate. Deixei-o falar e expor sua tese. O amigo, cuja identidade jamais
exporei publicamente (afinal, não sou “traíra”) identificou os três blocos em
que o mundo foi dividido no livro do escritor inglês como sendo os Estados
Unidos, a União Européia e a organização que congrega os países chamados de
“emergentes”. Entre estes estão o Brasil, a Rússia, a China, a Índia e a África
do Sul. Ou seja, ela congrega, praticamente, a metade da população mundial (só
a China e a Índia, somadas, perfazem algo em torno de 2,5 bilhões de
habitantes). Não disse, todavia, em qual das três facções estariam as
sociedades nacionais mais pobres do Planeta, algumas paupérrimas, rotuladas,
genericamente, como integrantes do Terceiro Mundo.
O tal amigo identificou
a Oceania, de “1984”, como sendo os Estados Unidos (por aí, já dá para o leitor
adivinhar qual é sua ideologia). Para ele, o Grande Irmão, o “Big Brother” é a
opinião pública (ou seria mais correto dizer “opinião publicada”, face o
crescente descrédito da imprensa no quesito “imparcialidade?). Argumentou com a
vigilância constante e exaustiva exercida por serviços secretos
norte-americanos, tipo CIA, que monitorariam todos nossos passos, notadamente
pela internet, espionando, o tempo todo, nossas idéias, nossos relacionamentos
e bisbilhotando até nossos e-mails (nem a presidente Dilma Roussef escapou
desse inconveniente). Ora, ora, ora... Porém, exageros a parte, não há como
negar que nossa privacidade é escandalosamente violada.
Aliás, talvez por
questão de vaidade (sei lá!) nós facilitamos essa violação. “Documentamos”,
através de fotografias e vídeos, com as câmeras de nossos celulares,
praticamente cada passo do nosso dia a dia: onde vamos, com quem estamos, o que
fazemos, como nos divertimos, o que comemos etc.etc.etc. Mas não mantemos essas
imagens apenas para nós, como sugere o mínimo bom senso. Imediatamente as
partilhamos com o mundo, nesta terra de ninguém que é a internet, postando-as
nas várias (e viciantes) redes sociais. Bem, isso não caracteriza, nem de
longe, a superditadura do livro de Orwell. Continuo considerando a idéia do meu
amigo disparatada, surreal, um delírio absurdo. Mas que nosso comportamento
narcisístico facilitaria o “trabalho” de um eventual “Big Brother”, caso, por
uma desgraça imensa, ele emergisse em algum lugar e quisesse nos controlar,
disso tenho pouquíssimas dúvidas.
As pessoas gostam de
ser bisbilhotadas e, sobretudo, de bisbilhotar. Claro que me refiro “à regra” e
não às exceções. Se não gostassem, os tais dos “reality shows” não fariam o
sucesso que fazem (embora o interesse público por esses programas parece ter
diminuído, pela falta de novidades). Sintomaticamente, a principal programação
do tipo tem o nome, justamente, do “Grande Irmão” de Orwell. Ou seja, “Big
Brother”.A privacidade, em vez de ser defendida com unhas e dentes, parece
incomodar as pessoas. E isso ocorre não apenas no Brasil, mas em boa parte do
mundo. Afinal, esses programas foram criados originalmente no Exterior e foram
apenas copiados por aqui.
Portanto, entendo que,
se alguém não apreciar o livro de George Orwell, o último argumento a que deve
se apegar é o da alegada falta de verossimilhança do enredo. Fico cada vez mais
convencido que a superditadura imaginada pelo escritor inglês é possível, sim.
Só espero que não seja provável. E não factível. Para que ela não aconteça, o
antídoto é a liberdade de pensamento. É pensar, pensar e pensar exaustivamente.
E partilhar com o mundo o que pensarmos. As idéias, sim, é que devem ser
divulgadas o tempo todo e em todos os espaços (entre os quais as redes sociais)
e não esse descarado e narcisístico desnudamento atual da nossa privacidade.
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