Do zero ao infinito
Pedro
J. Bondaczuk
A vida de George Orwell
(ou melhor, de Eric Arthur Blair, seu nome de batismo), foi sofrida, penosa e
acidentada em sua maior parte. Muito disso deveu-se a decisões equivocadas que
tomou. Todos nós cometemos falhas, escolhendo, muitas vezes, caminhos
inadequados e pagamos por isso. Todavia, a maior parte de suas desventuras
deveu-se ás circunstâncias adversas com que teve que se haver. O que me chama a
atenção, ao ler alguma de suas tantas biografias, é a forma determinada e
corajosa com que enfrentou as adversidades, que considero exemplar. Foi um
homem de quem se pode dizer, sem nenhum exagero, que ascendeu “do zero ao
infinito”. Tentarei demonstrar por que.
Orwell nunca se
entregou quando tudo parecia perdido. Não se rendeu nem mesmo à doença, quando
esta se revelou incurável e, portanto, terminal. Tanto que, num esforço
sobre-humano, conseguiu escrever o livro que há tempos tinha na cabeça e,
contrariando as evidências, conseguiu concluí-lo, ao preço da própria vida,
quando tudo indicava que isso seria impossível. Poucos têm dúvidas que seu
empenho para escrever “1984” apressou sua morte. Provavelmente, Orwell tinha
consciência desse risco. Todavia... não desistiu: perseverou e conseguiu. A
imensa maioria das pessoas teria desistido da empreitada. Aliás, naquelas
condições em que ele estava, com a saúde precaríssima e deteriorada,
provavelmente nem começaria. No seu caso, porém, o idealismo falou mais alto do
que a prudência.
Orwell nasceu na Índia,
então colônia do Império Britânico. Ainda muito criança, seus pais mudaram-se
para a Inglaterra, onde recebeu educação esmerada. Afinal, cursou uma escola de
elite, privilégio que pouquíssimos jovens da sua idade tinham (e ainda têm).
Estudou no Eton College. Essa é uma instituição de ensino tradicionalíssima,
fundada em 1440 pelo rei Henrique VI. Foi conhecida por muito tempo com o nome
de “King’s College of Our Lady of Eton Beside Windsor”. Era (e ainda é)
freqüentada pela nobreza britânica. Orwell tinha, portanto, tudo para uma
carreira acadêmica brilhante e para ostentar posição social de destaque na
Inglaterra. Mas aí tomou a primeira (de tantas outras) decisão equivocada.
Em vez de matricular-se
em uma universidade de elite, do mesmo nível do Eton College, por exemplo,
(como Oxford), atendendo às expectativas de seus pais, o jovem rebelde (mas
idealista) decidiu outra coisa. Resolveu entrar para a Polícia Imperial e
voltar para a Índia. Sensível e humano, como sempre foi, não tardou, porém,
para escandalizar-se com a forma com que os gendarmes da sua corporação
tratavam os indianos. Destaque-se que ele tinha tudo para ser promovido e fazer
brilhante carreira no que escolheu fazer. Mas... Tomou outra atitude
desastrada, que a família e os amigos nunca compreenderam. Largou a farda e
voltou para a Inglaterra. Todavia, não tinha qualquer formação específica e
nenhuma profissão que lhe garantisse o sustento.
O que ele fez? Foi
buscar situação melhor, voltando aos estudos, como seria o mais racional a
fazer? Infelizmente, para ele, não! Em vez disso, entregou-se a uma vida
boêmia, perambulando entre Londres e Paris. Lógico que para tanto precisaria
ter dinheiro para sustentar essa loucura. Mas Orwell não tinha. Consequência?
Chegou a cair na indigência, sem fonte de recursos e nem mesmo lugar para
morar. Tornou-se, literalmente, mendigo. Todavia, além de idealismo, tinha
talento inato para as letras e invulgar determinação. Em situação semelhante, a
maioria das pessoas jamais conseguiria sair do “lodaçal”. Orwell, porém, conseguiu.
Minha proposta,
observo, não é a de biografá-lo, mas de trazer à baila alguns dos obstáculos
que o escritor teve que superar para se tornar o mito literário em que se
tornou. Para tanto, em vez de recorrer a algum dos seus biógrafos, prefiro o
excelente ensaio do editor do semanário inglês “The Observer”, Robert McCrum,
intitulado “1984, o livro que matou George Orwell” (cuja versão em português
foi publicada pela Revista Bula, com tradução de Amanda Górski). O jornalista
destacou que, quando o escritor decidiu ir para a remota e inóspita ilha de
Jura, na Escócia, para escrever a obra que lhe daria a “imortalidade”, seus
problemas não se limitavam à saúde precaríssima (o que, por si só, já não
recomendaria que assumisse o desafio que se auto-impôs). Antes, bem antes, ele
havia adotado Richard, o que implicava em despesas naturais para sustentar um
filho. Em março de 1945, enquanto atuava como correspondente de guerra do “The
Observer”, sofreu o que, talvez, foi o pior golpe de sua vida. Recebeu a notícia
de que sua mulher, Eilleen, havia morrido, por causa da anestesia de uma
cirurgia corriqueira.
McCrum relata como
Orwell estava, e se sentia, quando resolveu seguir para a ilha de Jura: “De
repente, ficara viúvo e pai solteiro, ganhando a vida com muita dificuldade nos
alojamentos de Islington e trabalhando incessantemente para esquecer o fluxo de
remorso e dor causados pela morte da esposa”. Ao aceitar a tarefa de escrever o
novo livro, o escritor tinha, além de tudo, uma pressão extra a administrar: o
sucesso de sua obra anterior, “A revolução dos bichos”, que havia se tornado
grande fenômeno de vendas. Não se esperava dele, portanto, nada minimamente
inferior a esse best-seller. McCrum relata, assim, o embarque do autor de
“1984” para Jura: “Em 1946, ainda juntando os cacos de sua vida, pegou o trem
para a longa e árdua jornada... Ele disse a seu amigo Arthur Koestler que isso
era quase ‘como pegar um navio lotado para o Ártico’”. Levou para lá o filho
adotivo, Richard Blair, por não ter com quem deixar o garoto.
Não vou repetir a
odisséia de Orwell, doente, febril, quase agonizante, para concluir seu livro.
Isso pode ser lido em qualquer das suas biografias. Reproduzo, porém, a
descrição de Robert McCrum dos últimos dias de vida do escritor: “Assim que a
primavera chegou, ele começou a cuspir sangue, e sentia-se ‘desconfortável na
maior parte do tempo’, mas ainda era capaz de envolver-se nos rituais de
pré-publicação do romance, registrando ‘boas notícias’ com satisfação. Ele
brincava com Astor que não o surpreenderia se ele ‘tivesse que trocar aquele
perfil por um obituário’. ‘1984’ foi publicado em 8 de junho de 1949 (cinco
dias depois nos EUA) e foi quase que universalmente reconhecido como uma
obra-prima, até mesmo por Winston Churchill, que disse a seu médico ter lido
duas vezes. A saúde de Orwell continuava a decair. Nas poucas horas de 21 de
janeiro, sofreu uma hemorragia massiva no hospital e morreu sozinho”.
E o jornalista do “The
Observer” aduz: “As notícias foram transmitidas ao mundo pela BBC, na manhã
seguinte. Avril Blair (a segunda esposa) e Richard, ainda em Jura, ouviram a
notícia pelo rádio à bateria em Barnhill. Richard Blair não se lembra se o dia
estava claro ou frio, mas lembra do choque da notícia: seu pai estava morto,
com 46 anos. David Astor arranjou tudo para o funeral de Orwell nos jardins na
igreja de Sutton Courtenay, Oxfordshire. Ele jaz lá agora, como Eric Blair,
entre HH Asquith e uma família nativa de Gypsies”.
Ser bem-sucedido em
qualquer atividade é fácil, quando as circunstâncias são favoráveis. Difícil
(dificílimo) e para a maioria impossível, é chegar ao sucesso com tudo,
absolutamente tudo contrário. E essa façanha George Orwell conseguiu. Por isso,
toda a reverência que lhe é tributada ainda é ínfima face o esforço que fez
para alcançar seus objetivos. Reitero, pois, o que escrevi acima: ele foi um
homem que ascendeu do “zero” (a indigência) ao “infinito” (a glória), com
garra, ousadia e talento.
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