Saturday, October 07, 2017

Reverência às avessas

Pedro J. Bondaczuk

A única forma válida de manifestação de reverência pelos escritores que admiramos é a leitura dos seus livros. E por que faço essa enfática afirmação, que parece para lá de óbvia? Simples! Porque esse não é o procedimento usual de muitas pessoas que conheço.

Há gente que tem bibliotecas de razoável porte, com obras de reconhecido valor literário (não importa se de clássicos ou de autores contemporâneos) e que, no entanto, não se dá ao trabalho de ler, já não digo um único volume, mas uma só linha de qualquer deles. Para mim, leitor compulsivo, isso é estranho. Estranhíssimo!

Não é esse o tipo de “cliente” que pretendo conquistar. Sequer chamo essas pessoas de “leitoras”, já que aquilo que menos fazem é ler. Apesar do meu sucesso como escritor depender, basicamente, do volume de vendas dos meus livros, dispenso quem compre o que publiquei apenas para manter em uma prateleira, sem que se dê ao trabalho de apreciar (ou detestar) o que escrevi.

Sei que meu editor vai ficar louco com essa afirmação politicamente incorreta, mas não me importo de perder uma venda, ou várias (e, por conseqüência, meu porcentual de direitos autorais), se quem se dispuser a comprar alguma das obras que escrevi o esteja fazendo, apenas, a título de ostentação, quem sabe, por esse ser, talvez, o “produto literário da moda”.

Há pessoas que têm reverência até idólatra por livros, mas... como meros objetos (quem sabe, de decoração). Preocupam-se com a capa, com a encadernação, com o aspecto estético dos volumes que adquirem e com outras tantas filigranas, menos com o essencial. O que importa, todavia, não é nada disso, mas o conteúdo da obra, e apenas ele.

Lima Barreto, no livro “Nova Califórnia”, nos traz um saboroso conto, intitulado “A biblioteca”, que ilustra bem esse tipo de reverência às avessas por escritores. O personagem central dessa história, Fausto Carregal, herdou precioso acervo bibliográfico de seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, que, por sua vez, havia herdado boa parte do seu genitor. Mantinha os volumes sempre limpos, perfeitamente conservados, como se tivessem vindo das livrarias, novinhos em folha.

Havia entre eles autênticas raridades, como o primeiro tratado de Química escrito por Lavoisier, entre outras. Eram, na verdade, livros técnicos e nem o Conselheiro – que era tenente-coronel do Corpo de Engenheiros do Exército e lente da Escola Central – e muito menos seu filho, mero balconista de uma loja, entendiam seu conteúdo. Fausto, porém, nutria a esperança que algum dos seus filhos (ou os três) estudasse e viesse a entender dos assuntos tratados.

Todavia, frustrou-se. Nenhum deles concluiu, sequer, as primeiras letras. E, sem serem lidos por ninguém, aqueles preciosos livros, pelos quais o personagem nutria mística adoração, por lhe trazerem à memória seu pai e seu avô, pelos quais sentia imenso afeto e profunda saudade (pois já haviam morrido), não tinham a mínima serventia.

Numa certa tarde, em que se encontrava sozinho em casa, Fausto tomou uma dramática (e para ele, dolorosa) decisão. Já que não havia leitores para o que intuía serem raras preciosidades (e eram), houve por bem dar fim a elas. Comprou um latão de querosene, levou para o quintal, com toda a reverência e cuidado, como se transportasse frágeis bebês, todos os livros. Empilhou-os cuidadosamente (diria que com amor), embebeu-os de combustível e... ateou fogo.

Lima Barreto chega à seguinte conclusão, ao cabo da narrativa: “São deuses os livros, que precisam ser analisados, para depois serem adorados, e eles não aceitam a adoração senão dessa forma”. Os meus, por conseqüência, também não aceitam ser “adorados” senão mediante leitura.

A única forma válida, e lógica, de reverência pelos seus escritores preferidos, é, pois, lendo o que escrevem. É a crítica honesta, o debate inteligente das ideias expostas, a refutação respeitosa daquilo com o que não se concorda etc. Essa é a maneira, aliás, pela qual rendo homenagens aos responsáveis diretos por tudo o que sou e o que sei.

Os livros da minha volumosa (e caótica) biblioteca estão todos rabiscados. Tenho o hábito de sublinhar os trechos que me empolgam, sobre os quais, sempre que posso, escrevo alguma crônica, ou ensaio (quando exigem considerações mais detalhadas). Faço comentários à margem, principalmente sobre o que não concordo. Ou seja, deleito-me com o conteúdo, sem me importar nada, nada com a forma.

É o diálogo possível que estabeleço com os escritores (alguns mortos há já séculos), concordando ou discordando das suas ideias concordando ou discordando das suas ids produçrtos h, escrevo uma crorados, e eles n boa psa sem que se de00000000000000000000 e tenho certeza que é dessa forma que eles gostariam que suas produções intelectuais fossem lidas. É esse, também, o tratamento que gostaria que meus leitores (e não meros “clientes”) dessem à minha produção literária.


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