Friday, October 20, 2017

Pés no chão

Pedro J. Bondaczuk

Os “pés”, com os quais deveríamos caminhar sobre a Terra e justificar plenamente nossa condição de seres racionais, únicos animais com capacidade de julgamento e entendimento dos nossos atos, são a fé e um profundo senso de valores. Bem ou mal, foram estas as características que permitiram o surgimento desse ainda pálido e caricato arremedo de civilização que, convenhamos, é muito melhor do que a absoluta barbárie.

Alguns dos valores mais conhecidos e ostentados pelas pessoas são mal-compreendidos e, por isso, efetivamente pouco exercitados. Exemplo? A solidariedade. Sermos solidários com alguém não significa, somente, entendermos seus fracassos e aflições e lhe manifestarmos nosso apoio formal. Isso pode, até, trazer-lhe algum conforto, mas não resolverá sua situação. Seremos, de fato, solidários apenas se fizermos algo prático, se lhe prestarmos o máximo de ajuda que nos for possível, para que esse indivíduo reverta seu insucesso ou se livre do que o aflige.

Outro valor amiúde citado, mas pouco entendido, é a justiça. Pensamos nela somente em termos de punição a alguém que infrinja alguma norma legal e/ou moral. Raramente, todavia, cogitamos em premiar, de alguma forma, os méritos e as ações positivas alheios. Quando agimos assim, óbvio, não estamos sendo justos (mesmo que estejamos convictos que sim).

Outros tantos valores, como liberdade, altruísmo, piedade, ética etc. são amiúde poluídos e distorcidos por discursos maravilhosos e por mera retórica sem conteúdo, deixando de gerar, por conseqüência, os efeitos benéficos que deles se espera. Praticarmos benemerência, por exemplo, acompanhada de farta divulgação do nosso ato, não caracteriza, propriamente, um ato altruístico, mas se constitui em mera propaganda pessoal.

Sentirmos dó de alguma pessoa, por sua fraqueza, ou por suas carências (materiais e/ou espirituais) ou, pior, por sua absoluta indigência, não somente não é o sublime valor da piedade, como descamba para a soberba, que humilha o destinatário dessa atitude e, claro, multiplica seus sofrimentos. Constitui-se em suprema crueldade! Muitos agem assim sem nem mesmo se darem conta e julgam-se virtuosos. Evidentemente, não são!

Não basta, no entanto, nos restringirmos a cultivar valores. Precisamos disseminá-los, popularizá-los, transformá-los em rotina na vida cotidiana não apenas da nossa família, mas de toda a sociedade. Quanto mais pessoas cultivarem-nos e, sobretudo, os praticarem, maior será a evolução social de uma comunidade, de um povo, de uma nação e, por extensão, do mundo.

Temos a obrigação de instruir as novas gerações nesse aspecto. Trata-se da única fórmula que irá garantir a evolução mental e espiritual da espécie e distanciá-la, mais e mais, da sua animalidade latente, aproximando-a, por conseqüência, da divindade.
É com esses “pés” que devemos caminhar sobre a Terra. Esta é a nossa principal missão. Ou seja, a de sermos, em termos de cultivo e de prática de valores, melhores do que as gerações que nos antecederam.

Concordo, pois, plenamente, com o que afirma o humanista Daisaku Ikeda, em seu livro “Vida, um enigma, uma jóia preciosa”: “As fundações da existência humana são a fé e o senso dos valores. Somente participando na construção desses alicerces é que uma vida pode enfrentar os julgamentos a que estão sujeitos os seres humanos e gozar de completa paz e tranqüilidade. Num sentido muito realístico, habitar a Terra significa "ter os pés no chão"“.

Convenhamos, com a cabeça voltada para as três maiores ilusões que existem, glória, poder e fortuna, a humanidade não os tem. Daí o mundo ser este “vale de lágrimas”, com tanto sofrimento, violência, cupidez, aberrações e dor.

Enquanto o homem não aprender a “habitar a Terra”, no sentido lato, não passará de animal, com ligeiro verniz de civilização que lhe é conferido por este instrumento poderoso e nobre (que ele pouco utiliza): a razão.

Caminhemos, portanto, com os “pés” corretos e adequados (os da fé e dos valores) por este miraculoso planeta. Pisemos, hoje e sempre, com confiança o solo de uma nova realidade, a que viermos a construir com nosso talento, habilidade e aquilo que nos faz “semelhantes” (posto que jamais iguais) a Deus: a plena racionalidade.




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