Possibilidade estética
Pedro J. Bondaczuk
A beleza, a sabedoria e a
perenidade do espírito criativo humano estão ao nosso alcance, seja
qual for a nossa condição atual, mas exigem de nós um ato volitivo
positivo, um certo esforço, uma ação concreta, para que as
alcancemos e usufruamos. Não caem do nada. Não são inatas. Não se
impõem. Têm que ser buscadas, incansavelmente, para serem
usufruídas em sua plenitude e nos qualifiquem e redimam. São meras
possibilidades à espera de realização.
Estas palavras, de Jorge Luiz
Borges, não somente ilustram melhor o que afirmei, como até
explicam: “Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato
estético. Que são as palavras impressas em um livro? Que significam
esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro, se não
o abrimos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas.
Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada
instante”.
O mesmo raciocínio vale para
uma tela, de qualquer dos mestres das artes plásticas. Se não
buscarmos nos informar a propósito das técnicas de pintura, não
teremos condições de apreciar, com a devida inteireza, essa
manifestação de talento. Enxergaremos, apenas, um quadro de
dimensões variáveis, retratando pessoas, objetos e cenários (não
raro, nem isso) que seriam captados com maior precisão e nitidez por
um bom fotógrafo.
Em alguns casos, veremos,
apenas, o que nos parecerá um conjunto de borrões, ou figuras
distorcidas e desproporcionais, ou formas geométricas variadas, que
não aceitaremos como sendo “arte”. Escaparão de nossos olhos e
mentes as nuances dessas obras. Não saberemos apreciar, por exemplo,
o senso de proporção, por não atentarmos a ele. Não perceberemos
o jogo de luz e sombra. Escapará da nossa observação a perita
combinação de cores etc.etc.etc.
O mesmo vale em relação a
todas as outras artes. Afinal, a beleza é subjetiva. O que nos
parece belo e perfeito pode não parecer assim a quem tenha padrões
estéticos (no caso, gosto) diferentes dos nossos e vice-versa. Já
escrevi, há algum tempo, a respeito, mas nada me impede de retornar
ao tema que, para mim, tem e sempre terá relevância e pertinência.
Frise-se que a beleza não se
manifesta, apenas, pelo visual. Não a detectamos “só” com os
olhos. Outros sentidos (diria, todos) nos possibilitam contato íntimo
com ela. O ouvido é um deles e, convenhamos, não o mais
desprezível.
Ouçam, por exemplo, de olhos
fechados, um bom poema, declamado por quem saiba lhe dar a devida
ênfase. Ou se disponham a ouvir determinadas sinfonias, ou mesmo
canções populares de reconhecida qualidade. A alma parece flutuar
fora do corpo, nesses momentos de encantamento, e não raro logramos
entrar até em estado de êxtase.
Quanto à possibilidade
estética que existe (potencialmente) no conteúdo de um livro – a
que foi destacada por Borges – o drama de quem gostaria de ler e
não pode (porque não sabe) é muito maior do que de quem não quer
se dedicar à leitura, pelo menos num determinado momento. Isso pode
ocorrer ou porque a pessoa tem outras coisas a fazer, que julga mais
importantes naquele instante, ou por não ter cultivado, como
deveria, esse hábito e por isso não sente prazer de ler. Para o
analfabeto, porém, esses mananciais de informação e conhecimento
constituem-se num enorme mistério.
Ele tem intuição de que ali
poderia encontrar um mundo de sabedoria e beleza. Mas não tem a
“chave” que lhe permita abrir essa porta encantada e acessar esse
universo que lhe é interdito. É como se quisesse entrar num lugar
particular, mas fosse impedido por causa de uma injusta proibição.
Para ele, o livro até pode
ser um objeto estético (e em muitos casos, é), mas não pelo seu
conteúdo. Conheço muitos analfabetos que têm bibliotecas até de
razoável porte. Estas lhes servem, todavia, apenas como meros
elementos de decoração. Possuem volumes de encadernações
caprichadas, luxuosas e variadas, cujas cores e formatos das lombadas
combinam com absoluto bom gosto e arte. Mas só.
As estantes, geralmente de
madeiras nobres e com designs modernos e arrojados, dão, sem dúvida,
ares de sapiência e de sóbria austeridade aos ambientes nobres das
suas casas. Contudo, essas pessoas estão privadas do essencial. Para
elas, não adianta abrir nenhum desses livros, pois o interior de
todos eles lhes parecerá absolutamente igual. Estão privadas,
portanto, de concretizar a possibilidade estética que, como Borges
enfatizou, “muda a cada instante”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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