Fruto da crença
Pedro J. Bondaczuk
O medo, desde que não anormal
e imotivado, é uma reação sadia, necessária e instintiva de todo
e qualquer animal. É uma espécie de alerta, de sinal vermelho, para
que se evite o que possa vir a trazer riscos à nossa integridade
física e até à vida. Todos seres vivos sentem-no. Desconfio que
até as plantas possuam, em certo grau, esse mecanismo de proteção,
senão de defesa, embora, óbvio, não tenha a mínima condição de
comprovar essa suposição.
Trata-se de tema recorrente em
minhas reflexões (que já andam pela casa de alguns milhares de
textos, que classifico de crônicas, mas que muitos insistem em dizer
que são ensaios. Alguns, exagerados, afirmam, até, que lembram os
de Montaigne. Exagero, claro. E nem a minha pretensão chega a
tanto). Sou – como os leitores certamente já notaram –
incansável estudioso do comportamento humano com suas infinitas
nuances. E sempre me surpreendo com reações com as quais sequer
atinava. Essas descobertas, por seu turno, remetem-me a novos
estudos, mais observações, intermináveis leituras etc. etc.etc.,
numa atividade sem fim.
Sobre o medo, inclusive,
cheguei a fazer, em fins dos anos 80, uma conferência no auditório
do Senac, em Campinas, num programa que contou com vários
especialistas na matéria, como psicólogos, psiquiatras e estudiosos
do comportamento. Ensinei (pouca coisa), aprendi muito e foi uma
saudabilíssima troca de informações entre oradores e plateia,
composta, quase toda, por profissionais da área e estudantes.
Óbvio que, antes de tudo,
tracei a distinção entre o medo normal, saudável, instintivo e
necessário, e o doentio, exagerado, superlativo: o pânico, o terror
e outras tantas manifestações patológicas (entre as quais, as
várias fobias). Reitero que ensinei (pouca coisa) e aprendi (muito)
com os ilustres conferencistas que me sucederam. Até hoje, todavia,
não entendi a razão de haver sido convidado para esse evento.
Não sou psicólogo,
psiquiatra ou algo que o valha. Não passo de um projeto de escritor
que tem, como “matéria-prima” do seu trabalho, o ser humano, em
toda a sua grandeza, majestade e transcendência e, também, na sua
miséria, fragilidade e efemeridade. É verdade que, pelo visto,
saí-me muito bem na conferência. Pelo menos fui agraciado por
prolongados aplausos, de uns cinco minutos de duração, com a
plateia toda de pé. Provavelmente, tratou-se de generosidade dos
presentes.
Na ocasião, eu ainda não
havia lido o conto “O medo”, de Guy de Maupassant, que em poucas
palavras, traz subsídios valiosíssimos para o estudo do tema. Uma
pena. Se tivesse lido, minha performance, certamente, seria melhor e
minha preleção, mais proveitosa. Como se vê, não raro os
escritores têm mais coisas a dizer sobre comportamento humano do que
os especialistas. É o caso.
Maupassant coloca, na boca do
principal personagem do conto, esta constatação: “O medo (e os
homens mais valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma
sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo
espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos
faz estremecer de angústia. Mas quando se é corajoso, isso não
acontece diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem
diante de qualquer das formas conhecidas de perigo; isso acontece em
determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências
misteriosas e diante de riscos vagos”.
Medo, portanto, desde que
motivado, ou seja, face a um risco concreto, iminente ou não, não é
sinônimo de covardia. E nem a sua ausência, nesses casos, é sinal
de coragem. É, isto sim, sintoma de imprudência, de temeridade, de
falta de respeito, de valorização e de amor à vida. Mas não é
esse o aspecto que considero mais relevante no conto de Maupassant. É
esta observação complementar: “O verdadeiro medo é como uma
reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que
acredita em fantasmas e que imagina ver espectros à noite deve
sentir o medo em todo o seu medonho horror”.
Esse sentimento subjetivo, que
causa efeitos irreversíveis na mente e que depende exclusivamente da
crença, é que deve ser evitado. Produz sofrimentos impossíveis de
serem dimensionados e, levado ao grau extremo, o de terror, pode,
até, redundar na morte de quem passa por essa traumatizante
experiência. Deve-se, pois, cuidar naquilo em que se acredita.
Eu, por exemplo, tive, durante
muitos anos (e não somente na infância, mas em boa parte da
adolescência) um medo enorme de escuro. Apesar da minha parte
racional dizer-me que não havia perigo algum na falta de luz (a não
ser o risco de algum tropeção ou queda em algum buraco ou outra
coisa do tipo), o lado irracional punha todo o meu corpo em alerta.
Resolvi buscar no passado a causa desse meu comportamento que me
constrangia tanto.
Depois de forçar muito a
memória, finalmente descobri. Quando eu tinha quatro anos de idade,
um tio me disse, para acalmar minhas traquinagens noturnas, que eu
não deveria brincar à noite no quintal, pois lá havia “um
monstro” que atacava criancinhas desobedientes. Aquilo calou fundo
no meu subconsciente. Por que? Não sei! Desde então, a escuridão
passou a me apavorar. Por que esse medo se instalou tão fundo na
minha mente? Simplesmente, porque “acreditei” no que um adulto
havia me dito, mesmo que eu ou qualquer outro menino com que me
relacionava nunca tenhamos visto qualquer criatura monstruosa e
homicida na escuridão.
A partir do momento em que
passei a não dar mais crédito a essa bobagem, esse medo tolo
desapareceu, como que por encanto, e para sempre. Devemos pensar bem,
portanto, no que dizemos às crianças. Aquilo que pode nos parecer
uma observação casual, trivial e aparentemente sem conseqüência,
pode marcá-la para sempre. Aliás, sou contra tratar alguém, tenha
a idade que tiver, como se fosse bobo. Sou avesso a esse excesso de
“inhos”, ditos aos pequeninos, essa infantilização dos adultos,
achando que com isso serão mais simpáticos e mais amados por seus
filhos, netos ou sobrinhos. Certamente, não serão.
Não se deve mentir, seja por
qual motivo for, para uma criança. Não se deve incutir, sobretudo,.
em suas mentes, fantasias de quaisquer espécies, notadamente as de
caráter negativo. Elas, no momento adequado, saberão elaborar as
suas. E, certamente, estas não serão assustadoras e muito menos
aterrorizantes. Afinal, o medo é um mecanismo de defesa importante
demais (e indispensável) para que se brinque com ele.
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