Vingança do Estado
Pedro J. Bondaczuk
A pena de morte é um dos temas mais polêmicos, e que
despertam mais paixões, em todo o mundo. E não apenas entre juristas,
sociólogos e outros intelectuais, mas, sobretudo, entre as pessoas do povo.
Vários escritores recorreram a essa temática, sem opinarem diretamente,
deixando suas opiniões sutilmente implícitas nas entrelinhas ou nos diálogos
dos personagens. Também já recorri ao tema, em um dos meus tantos contos,
enfatizando o terror e a angústia de um sentenciado aguardando a execução por
crime que não cometeu. Alguns, não importa a profissão que exerçam, defendem
com paixão esse tipo de punição, argumentando que determinados delinqüentes são
irrecuperáveis e nada têm a oferecer à sociedade. Convenhamos, há uma
infinidade desses tipos que devem, no mínimo, ser segregados “ad aeternum” da
sociedade. Outros, todavia, opõem-se, tenazmente, à medida, classificando-a de
“vingança oficializada”.
Sempre que ocorre algum crime,
com requintes de crueldade, como o cometido no início de 1985 (prefiro sempre
citar casos antigos e já esquecidos por todos), por um jovem, na cidade de São
Paulo, no qual pai, mãe e irmãos foram trucidados, sem que tivessem qualquer
chance de defesa, apenas porque momentos antes o rapaz havia sido advertido
pelos pais, o assunto sobre a pena de morte vem à baila. Pronunciamentos
passionais, então, são feitos em profusão, defendendo a medida, mesmo por
pessoas esclarecidas e ponderadas.
Confesso não ter opinião formada
(não, pelo menos consolidada e imutável) a propósito. Já mudei de postura
várias vezes e não se trata de falta de personalidade como pode parecer. Quando
dou voz, apenas, à emoção, face crimes hediondos, sou totalmente a favor da
pena de morte. Mas, quando priorizo, exclusivamente, a lógica e a razão e
penso, sobretudo, na possibilidade de erros judiciais – aliás bastante comuns e recorrentes –, sou visceralmente
contrário. Creio que a maioria das pessoas age também assim, embora possa negar
enfaticamente. Vá se acreditar na sinceridade alheia!
Desde tempos imemoriais, essa
prática vem sendo adotada para punir os que suprimem vidas. E as execuções são
feitas das mais variadas maneiras, indo do apedrejamento, do linchamento e da
forca – as formas mais comuns adotadas em passado ainda recente – aos pelotões
de fuzilamento, câmaras de gás, cadeiras elétricas e injeções letais, nos
últimos tempos. Houve época em que execuções se constituíam em acontecimentos
sociais, em uma espécie de mórbida diversão. Reuniam milhares de pessoas em
praças públicas, famílias inteiras (inclusive crianças) e a maioria aceitava,
como a coisa mais natural do mundo, a supressão de vidas.
Num determinado estágio da
civilização, cabia aos parentes das vítimas de assassinato punir os criminosos.
Eram as propaladas “dívidas de sangue”, que tinham, necessariamente, que ser
resgatadas. Coitado, por exemplo, do primogênito que deixasse de vingar a morte
do pai! Ou do irmão que não vingasse a morte de irmão! Quem se negasse a pagar
esse cruel débito macabro, ou por ser avesso à violência, ou por reconhecer justiça
na execução do parente (quando este a merecia), era segregado do convívio
social. Passava por humilhações inomináveis e era rotulado de covarde, pecha
que carregava pelo resto da vida. E tal designação era considerada a maior das
ofensas que se poderia fazer a alguém.
Essas dívidas de sangue deram
causa a históricas guerras entre famílias, intermináveis, algumas com até mais
de um século de duração. Uma das mais célebres, nos Estados Unidos, por
exemplo, foi a que opôs os Martins e os McCoys. E, na cidade pernambucana de
Exu, até recentemente, coisa de décadas, duas famílias ainda mantinham disputa
desse tipo, sustentando longa e inconciliável inimizade, que fez dezenas de
vítimas, dos dois lados, por anos e mais anos.
A pena de morte nada mais é do
que o Estado assumindo a dívida de sangue. Não passa, portanto, de vingança da
sociedade contra infratores. Ou seja, aquele que condena o homicídio (no caso o
Estado, na figura de um preposto, o juiz), comete o mesmo delito que proíbe aos
outros. Isso, no mínimo, é uma aberrante contradição! Um erro jamais justifica
outro, seja quem for que o cometa ou qual seja a razão.
Morte é morte, tanto faz se
praticada mediante tocaia por algum malfeitor, com o objetivo de roubar ou
estuprar a vítima, ou se causada por gás cianureto, por injeção de produto
químico letal ou por tiro de fuzil de algum carrasco a serviço do Estado.
Aliás, o extermínio autorizado e patrocinado pela sociedade, do ponto de vista
moral, é pior do que o dos homicidas tradicionais que, certos ou errados, têm
lá (ou pelo menos acreditam ter) seus motivos. Já o executor de uma sentença de
morte não tem o mínimo interesse pessoal no condenado, ao qual sequer conhece.
Mata fria, impiedosa e mecanicamente um ser humano, como se estivesse matando um
animal qualquer, um frango, um porco ou um carneiro.
Ademais, não foi um e nem foram
apenas dois os erros judiciais cometidos por tribunais, atribuindo culpas a
pessoas absolutamente inocentes, em todos os tempos e lugares. Essas aberrações
jurídicas somam-se aos milhares, quiçá aos milhões e penalizam, quase que
somente os pobres, os humildes, os iletrados que não têm como pagar bons
advogados. Muitos desses erros – embora não tantos como gostaríamos – são
reparados a tempo, mas somente quando a pena imposta ao injustiçado é a da
privação da liberdade. Em raros casos, os condenados à morte livram-se da
execução, pela descoberta, localização e captura dos verdadeiros culpados. Mas
esta não é, e nunca foi, a regra, senão uma exceção.
Mesmo no caso de prisões
indevidas, a reparação nunca é completa. Que dinheiro paga uma reputação
manchada, as humilhações e os sofrimentos de quem é encarcerado sem dever? E
quando o réu é condenado à morte, executado e depois se descobre que era
inocente? Como reparar essa monstruosidade? Como devolver a vida ao executado
indevidamente? Quem deve ser responsabilizado por tamanho erro judiciário? O
juiz? O promotor? As testemunhas? O advogado? O júri? A polícia? O Estado?
Se for este último, a quem cabe a
responsabilidade? Ao presidente da República? Ao governador? Ao Supremo? Todos,
certamente, vão saber encontrar subterfúgios e o erro vai passar batido.
Quantos, por exemplo, dos 1.500 executados em 1985 (olha eu citando, de novo,
dados antigos), em 40 países onde vigorava a pena de morte, não eram inocentes?
Ninguém sabe! E quais são os responsáveis por esses erros? Quem os punirá?
Como? Ficam as incômodas perguntas no ar...E fica o básico preceito bíblico, um
dos Dez Mandamentos: não matarás! E em hipótese alguma, acrescente-se!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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