Tuesday, August 05, 2014

A Santo André de João Ramalho

Pedro J. Bondaczuk

A Santo André atual, pujante município do chamado ABC paulista, que integra a Região Metropolitana da São Paulo, não tem nada a ver (a não ser o nome e a localização) com a antiga aldeia, criada por João Ramalho, por volta de 1530. Aquela povoação, depois de haver sido elevada à condição de vila em 1553, teve sua extinção decretada pelo governador geral do Brasil, Mem de Sá. Seus moradores, tendo à frente seu fundador, receberam, em 1560, ordens expressas de se transferirem para a nascente São Paulo de Piratininga, quando esta contava, apenas, com seis anos de existência. Apesar da resistência inicial, seus habitantes, finalmente, acataram a determinação oficial. E o local não tardou a cair no absoluto abandono até 1735, quando da edificação da capela de Nossa Senhora da Conceição da Boa Viagem, num ponto que servia de parada aos viajantes que percorriam o Caminho do Mar.

Em torno dessa igrejinha formou-se uma aldeia, com o objetivo de proporcionar repouso, alimentação e todo o tipo de ajuda aos que procediam do litoral, tornando-a uma espécie de pousada de tropeiros. O núcleo cresceu e ficou conhecido como São Bernardo, nome que foi oficializado em 1812. Em 1889, foi elevada, oficialmente, à condição de vila, conservando, ainda, o mesmo nome. Só foi elevada à cidade e rebatizada com a denominação atual em 1906, em pleno século XX. Como era, todavia, a Santo André original, aquela fundada por João Ramalho e sua multidão de filhos, pelo cacique Tibiriçá e por índios de sua tribo? Para os padrões europeus, era um “horror”, um “antro de bandidos”. Pelo menos foi esta a impressão que os padres da Companhia de Jesus, que chegaram à região em 1549, tiveram. Tanto que o jesuíta Leonardo Nunes, além de excomungar João Ramalho, comparou a aldeia a “Sodoma e Gomorra”.

Raimundo de Magalhães descreve, em seu livro “Aconteceu no velho São Paulo”! (Coleção Saraiva, em 1964), da seguinte maneira aquele primitivo e insólito povoamento: “Naturalmente, tinha um aspecto selvagem. A terra era selvagem; os casebres, de taipa-de-mão, cobertos de sapé, eram selvagens; as mulheres mestiças, mal enrodilhadas em panos de algodão, de fisionomias endurecidas pelos trabalhos incessantes, seriam também selvagens. E os homens, na sua rudeza incomparável, barbudos e desataviados, possivelmente vestidos de pele, por toda a parte alçando o perfil de lince, seriam, entre todos os seres, entre as próprias feras, os mais temerosos e os mais selvagens”. Precisava-se, pois, de muita coragem para sequer visitar tão assustadora povoação.

E como todas aquelas pessoas se juntaram, ali, à multidão de filhos de João Ramalho e aos índios chefiados por Tibiriçá, para formar aquela aldeia? Raimundo de Menezes nos informa: “O núcleo de Santo André, assim chamado em memória do padroeiro da vila, foi atraindo outros forasteiros. A seleção não podia ser das maiores. Apareceu gente de toda espécie, bons e maus, estes últimos em maior número do que aqueles. Tendo brotado na beira do sertão, ficou conhecido como Santo André da Borda do Campo”. E o que atraiu tanta gente para lá, tendo em conta que não havia nenhuma mina de ouro nas proximidades, nenhum atrativo especial, sequer algum grande rio a banhar a localidade? Da minha parte intuo que tenha sido a permissividade sexual, a ausência de regras que impedissem orgias sexuais desbragadas, consideradas “normais” pelas índias. O que mais poderia ser?

O pitoresco é que aquela aldeia diferente de tudo o que os europeus já haviam visto, foi reconhecida pelas autoridades de Lisboa e pela própria Coroa, por Dom João III. Raimundo de Menezes informa a respeito: “Não tardou que o pequeno arraial viesse a receber o título honroso de vila, passando o seu fundador a ser apontado com o título mais honroso ainda de ‘Alcaide Mor’ e de ‘Guarda Mor do Campo’”. Conhecendo esses detalhes, não me surpreendo com o fato do governador geral, Mem de Sá, anos depois, haver decretado a extinção de Santo André e a mudança de todos seus moradores para São Paulo de Piratininga, muito mais organizada e “civilizada”, de acordo com os padrões morais e espirituais dos jesuítas, seus fundadores.

Se a aldeia de João Ramalho horrorizava os portugueses, habituados a condições rústicas, embora não tanto quanto aquelas, de suas colônias, imaginem a impressão de europeus de outras nacionalidades que eventualmente viessem a conhecer aquela “terra sem lei”! Um dos que viveram essa experiência foi o alemão Ulrich Schmidel. Raimundo de Menezes narra, em seu livro, quem era esse pitoresco viajante, um tanto amalucado, e como ele chegou ao vilarejo de mestiços: “Tinha um tipo esquisito. Sofria de delírio ambulatório. De Assunção, viera a ter em São Vicente. De São Vicente, foi andando. E andando, andando sempre, quando viu, estava no meio de gente branca. Era ali Santo André”.

E qual foi a impressão que o alemão teve do vilarejo? Raimundo de Menezes a reproduz assim: “Afinal, chegamos a uma aldeia habitada por cristãos, cujo chefe se chamava João Reinvelle (forma como entendeu o sobrenome Ramalho). Felizmente, para nós, andava ausente. Pois o arraial tinha-me cara de ser um covil de bandidos. Partira Reinvelle para ir com outros cristãos que habitavam uma povoação chamada Vincenda (São Vicente), a fim de com eles concluir um tratado”.

E o alemão prossegue seu relato, reproduzido por Raimundo de Menezes em seu livro: “Apenas lhe vimos o filho, que nos recebeu bem, embora nos inspirasse muito mais desconfiança do que os próprios índios. Deixando esse lugar, rendemos graças aos céus por dele havermos podido sair sãos e salvos”. Raimundo de Menezes arremata seus relatos sobre Santo André (a primitiva) e de seu fundador, da seguinte forma: “Apesar de tudo, João Ramalho era o homem mais poderoso da região, mais do que o próprio soberano. Havia guerreado e pacificado a província, reunindo cinco mil índios, enquanto que o rei de Portugal reuniria só dois mil”. Esta era, em suma, a Santo André original.

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