A Santo André de João
Ramalho
Pedro
J. Bondaczuk
A Santo André atual,
pujante município do chamado ABC paulista, que integra a Região Metropolitana
da São Paulo, não tem nada a ver (a não ser o nome e a localização) com a
antiga aldeia, criada por João Ramalho, por volta de 1530. Aquela povoação,
depois de haver sido elevada à condição de vila em 1553, teve sua extinção
decretada pelo governador geral do Brasil, Mem de Sá. Seus moradores, tendo à
frente seu fundador, receberam, em 1560, ordens expressas de se transferirem
para a nascente São Paulo de Piratininga, quando esta contava, apenas, com seis
anos de existência. Apesar da resistência inicial, seus habitantes, finalmente,
acataram a determinação oficial. E o local não tardou a cair no absoluto abandono
até 1735, quando da edificação da capela de Nossa Senhora da Conceição da Boa
Viagem, num ponto que servia de parada aos viajantes que percorriam o Caminho
do Mar.
Em torno dessa
igrejinha formou-se uma aldeia, com o objetivo de proporcionar repouso,
alimentação e todo o tipo de ajuda aos que procediam do litoral, tornando-a uma
espécie de pousada de tropeiros. O núcleo cresceu e ficou conhecido como São
Bernardo, nome que foi oficializado em 1812. Em 1889, foi elevada,
oficialmente, à condição de vila, conservando, ainda, o mesmo nome. Só foi
elevada à cidade e rebatizada com a denominação atual em 1906, em pleno século
XX. Como era, todavia, a Santo André original, aquela fundada por João Ramalho
e sua multidão de filhos, pelo cacique Tibiriçá e por índios de sua tribo? Para
os padrões europeus, era um “horror”, um “antro de bandidos”. Pelo menos foi
esta a impressão que os padres da Companhia de Jesus, que chegaram à região em
1549, tiveram. Tanto que o jesuíta Leonardo Nunes, além de excomungar João
Ramalho, comparou a aldeia a “Sodoma e Gomorra”.
Raimundo de Magalhães
descreve, em seu livro “Aconteceu no velho São Paulo”! (Coleção Saraiva, em
1964), da seguinte maneira aquele primitivo e insólito povoamento:
“Naturalmente, tinha um aspecto selvagem. A terra era selvagem; os casebres, de
taipa-de-mão, cobertos de sapé, eram selvagens; as mulheres mestiças, mal
enrodilhadas em panos de algodão, de fisionomias endurecidas pelos trabalhos
incessantes, seriam também selvagens. E os homens, na sua rudeza incomparável,
barbudos e desataviados, possivelmente vestidos de pele, por toda a parte
alçando o perfil de lince, seriam, entre todos os seres, entre as próprias
feras, os mais temerosos e os mais selvagens”. Precisava-se, pois, de muita
coragem para sequer visitar tão assustadora povoação.
E como todas aquelas
pessoas se juntaram, ali, à multidão de filhos de João Ramalho e aos índios
chefiados por Tibiriçá, para formar aquela aldeia? Raimundo de Menezes nos
informa: “O núcleo de Santo André, assim chamado em memória do padroeiro da
vila, foi atraindo outros forasteiros. A seleção não podia ser das maiores.
Apareceu gente de toda espécie, bons e maus, estes últimos em maior número do
que aqueles. Tendo brotado na beira do sertão, ficou conhecido como Santo André
da Borda do Campo”. E o que atraiu tanta gente para lá, tendo em conta que não
havia nenhuma mina de ouro nas proximidades, nenhum atrativo especial, sequer
algum grande rio a banhar a localidade? Da minha parte intuo que tenha sido a
permissividade sexual, a ausência de regras que impedissem orgias sexuais
desbragadas, consideradas “normais” pelas índias. O que mais poderia ser?
O pitoresco é que
aquela aldeia diferente de tudo o que os europeus já haviam visto, foi
reconhecida pelas autoridades de Lisboa e pela própria Coroa, por Dom João III.
Raimundo de Menezes informa a respeito: “Não tardou que o pequeno arraial
viesse a receber o título honroso de vila, passando o seu fundador a ser
apontado com o título mais honroso ainda de ‘Alcaide Mor’ e de ‘Guarda Mor do
Campo’”. Conhecendo esses detalhes, não me surpreendo com o fato do governador
geral, Mem de Sá, anos depois, haver decretado a extinção de Santo André e a
mudança de todos seus moradores para São Paulo de Piratininga, muito mais
organizada e “civilizada”, de acordo com os padrões morais e espirituais dos
jesuítas, seus fundadores.
Se a aldeia de João
Ramalho horrorizava os portugueses, habituados a condições rústicas, embora não
tanto quanto aquelas, de suas colônias, imaginem a impressão de europeus de
outras nacionalidades que eventualmente viessem a conhecer aquela “terra sem
lei”! Um dos que viveram essa experiência foi o alemão Ulrich Schmidel.
Raimundo de Menezes narra, em seu livro, quem era esse pitoresco viajante, um
tanto amalucado, e como ele chegou ao vilarejo de mestiços: “Tinha um tipo
esquisito. Sofria de delírio ambulatório. De Assunção, viera a ter em São
Vicente. De São Vicente, foi andando. E andando, andando sempre, quando viu,
estava no meio de gente branca. Era ali Santo André”.
E qual foi a impressão
que o alemão teve do vilarejo? Raimundo de Menezes a reproduz assim: “Afinal,
chegamos a uma aldeia habitada por cristãos, cujo chefe se chamava João
Reinvelle (forma como entendeu o sobrenome Ramalho). Felizmente, para nós,
andava ausente. Pois o arraial tinha-me cara de ser um covil de bandidos.
Partira Reinvelle para ir com outros cristãos que habitavam uma povoação
chamada Vincenda (São Vicente), a fim de com eles concluir um tratado”.
E o alemão prossegue
seu relato, reproduzido por Raimundo de Menezes em seu livro: “Apenas lhe vimos
o filho, que nos recebeu bem, embora nos inspirasse muito mais desconfiança do
que os próprios índios. Deixando esse lugar, rendemos graças aos céus por dele
havermos podido sair sãos e salvos”. Raimundo de Menezes arremata seus relatos
sobre Santo André (a primitiva) e de seu fundador, da seguinte forma: “Apesar
de tudo, João Ramalho era o homem mais poderoso da região, mais do que o
próprio soberano. Havia guerreado e pacificado a província, reunindo cinco mil
índios, enquanto que o rei de Portugal reuniria só dois mil”. Esta era, em
suma, a Santo André original.
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