Mito quase ignorado
Pedro
J. Bondaczuk
A História do Brasil
está recheada de mitos, de figuras magníficas que lembram mais personagens de
lendas do que pessoas como nós, de carne e osso, com as mesmas fragilidades e
vulnerabilidades que nos caracterizam. São perfeitas demais, são nobres em excesso,
são heróicas ao extremo para serem sequer verossímeis, quanto mais verdadeiras.
Dos episódios narrados pelos historiadores, e ensinados nas escolas, ficamos em
dúvida sobre quantos e quais são baseados em fatos reais, inclusive
documentados, e quantos não passam de meros frutos da imaginação. Não se trata
de duvidar de sua honestidade ou de sua competência. Trata-se, isso sim, de
constatar ostensiva carência de fontes informativas minimamente confiáveis.
Quanto da nossa História é constituído de fatos? Quanto não passa de lenda?
Provavelmente, jamais saberemos.
Os personagens dos
períodos de pré e de pós independência, até que soam como pelo menos
verossímeis, embora não se possa descartar a possibilidade de muitos terem sido
mitificados e de seus feitos serem exagerados ou superestimados. Mas de épocas
mais remotas, é impossível afirmar que as figuras que despontam como heróis da
nacionalidade tenham sido, realmente, como a tradição as consagrou. É possível,
até, que fossem maiores e mais importantes do que descritas e imortalizadas.
Como o oposto também tem que ser considerado.
Entre os mitos
nacionais, entendo que João Ramalho mereceria maior atenção, e até mais
reverência (sobretudo dos paulistas, que descendem, em boa parte, desse
vigoroso tronco) do que a que lhe é dedicada. É verdade que seu nome é
imortalizado em ruas, praças, avenidas, escolas e até em cidades Brasil afora.
Acho, todavia, pouco, muito pouco. São Paulo, por exemplo, reverencia muito
mais o cacique Tibiriçá (o que não acho injusto) – cujo nome consta,
oficialmente, na ata de sua fundação ao lado dos padres Manuel da Nóbrega e
José de Anchieta – do que o verdadeiro responsável pela vila original não ter
sido varrida do mapa, em 1562. Dá mais valor aos bandeirantes – como Fernão Dias
Paes Leme, Bartolomeu Bueno da Silva e um punhado de tantos outros – do que ao
seu heróico ascendente. Reverencia, com muito maior zelo, figuras que pouco têm
a ver com a cidade em detrimento de quem ela deve sua mera existência.
Os paulistas, sobretudo
os paulistanos, não têm o direito de ignorar a ação providencial e heróica de
João Ramalho, quando do ataque de índios adversários da presença de
estrangeiros brancos não só no Planalto, mas em boa parte dos territórios dos
atuais Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, na famosa “Confederação dos
Tamoios”, aliança de diversas tribos inimigas dos guaianazes tão bem descrita
por José de Anchieta em suas cartas. A batalha decisiva, que salvou São Paulo
de Piratininga da extinção e seus habitantes de serem trucidados e
provavelmente de se transformarem em “almoço” (ou jantar) dos ferozes inimigos,
que eram antropófagos, tem até data assinalada para a posteridade: 10 de julho
de 1562.
Nesse dia, os
atacantes, que mantiveram cerco de dois dias ao povoamento, foram
definitivamente batidos e expulsos das redondezas, deixando para trás centenas
e centenas de cadáveres. Roberto Pompeu de Toledo assim se refere a esse
episódio, em excelente matéria que publicou, há algum tempo, na “Veja São
Paulo”: “Os atacantes chegaram a avançar sobre o quintal dos jesuítas. João
Ramalho tomou a si a tarefa de comandar a resistência. E Tibiriçá revelou-se,
nela, o mais valoroso dos combatentes. O cacique, chamado por Anchieta de
‘fundador e conservador da casa de Piratininga’, morreu naquele mesmo ano”. O
chefe indígena tem (e reiterro, com justiça) seus restos mortais conservados na
Catedral da Sé. E os de João Ramalho? Ninguém sabe com certeza onde foram
sepultados. Só se tem certeza que não foram em São Paulo.
Aliás, pouco se sabe
dos derradeiros 16 anos de vida deste que é, de fato e de direito, um dos
maiores, se não o maior dos mitos da nacionalidade. Desconhece-se, por exemplo,
o dia exato da sua morte (como ademais nunca se soube da do seu nascimento).
Consta, somente, que morreu em 1580, numa rústica casa no Vale do Paraíba –
onde se auto-exilou após o governador geral Mem de Sá haver decretado a
extinção de Santo André da Borda do Campo – aos 87 anos de idade. Bartira, com
quem chegara a se casar oficialmente, havia morrido por volta de 1560, conforme
meticuloso relato de José de Anchieta. Seu sogro e amigo, o cacique Tibiriçá,
morreu poucos meses depois de haver se destacado na guerra contra a
Confederação dos Tamoios.
Aliás, a morte
desse chefe indígena foi meticulosamente relatada para a posteridade. Peço
licença para reproduzir um texto, colhido na enciclopédia eletrônica Wikipédia,
que faz esse tipo de relato: “(Tibiriçá) faleceu a 25 de dezembro de 1562, com avançada idade, vítima de
prolongada enfermidade. Aquele dia de natal foi de tristeza para os índios. O
cacique, desde cedinho, estava passando muito mal. O padre Anchieta, a seu
lado, empenhava-se em suavizar-lhe os últimos momentos. Havia muito tempo vinha
ele sofrendo de câmaras de sangue. E com a avançada idade que atravessava,
aquilo mais lhe torturava os derradeiros estertores... A indiada, cá fora, não
se conformava, e chorava. Chorava aos gritos angustiados. E pela aldeia rolava
um lamento surdo e inquietante. Os tambores, lá longe, ecoavam. Logo mais, a nova
melancólica caiu como um raio: Tibiriçá morrera! O Martim Afonso deixara de
existir. Piratininga inteira vibrou: os índios e os padres, À tardinha,
realizou-se o sepultamento com toda a pompa. Compareceu todo o mundo. João
Ramalho e sua mulher Bartira, batizada com o nome de Isabel, seus numerosos
filhos, seus netos, todos os seus descendentes, os jesuítas, os indígenas
chorando... Seu corpo foi levado para o colégio de São Paulo e ali sepultado.
Hoje jaz na cripta da Catedral de São Paulo, ali no largo da Sé”.
E sobre a morte de João Ramalho? O que há?
Nada! Quem escreveu? Ninguém! A História, como se vê, não raro, é injusta com
os verdadeiros heróis. É o caso do tratamento dado a esse mito da nacionalidade
brasileira, que na minha visão é mais importante, até, do que Tiradentes, José
Bonifácio, Dom Pedro I e tantos e tantos outros.
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