Sunday, August 03, 2014

Um conflito em quatro versões

Pedro J. Bondaczuk

A reputação de João Ramalho, pelo menos entre os jesuítas fundadores de São Paulo de Piratininga, não era das melhores. Aliás, era péssima. Tanto que chegou a ser excomungado. A excomunhão deveu-se tanto aos seus hábitos sexuais, que não eram, convenhamos, nada católicos, quanto ao seu empenho para impedir a conversão dos índios sob seu comando à crença que ele considerava imprópria para os silvícolas, por ser totalmente contrária aos seus hábitos e cultura. É certo que, tempos depois, o selvagem aventureiro teria se arrependido de seus atos, conforme vários registros nesse sentido. Tanto que sua excomunhão foi revogada, por intercessão do Padre Manuel da Nóbrega. João Ramalho se tornou, depois disso, defensor ferrenho do nascente vilarejo surgido ao redor do colégio dos jesuítas, além de se tornar, em 1564, vereador de São Paulo de Piratininga.

Tenho em mãos um conjunto de cartas escritas por sacerdotes da Companhia de Jesus em que são narrados episódios desse conflito que, pelo que deduzo, durou por volta de uma década. Previno, porém, que não são documentos originais. Tratam-se de cópias (na verdade, cópias de cópias de cópias de cópias etc.etc.etc.). Portanto, é impossível determinar a autenticidade dessa correspondência. Intuo que as cartas são autênticas. Talvez tenham sofrido uma ou outra modificação na forma, ou seja, na linguagem, de sorte a torná-la inteligível a nós, pessoas do século XXI. Presumo, todavia, que o conteúdo não sofreu nenhuma alteração, sobretudo, nenhuma adulteração.

A primeira das cartas que me proponho a comentar com você, paciente leitor, foi escrita por um tal de Pero Correa. Foi endereçada ao padre Baltazar Nunes e datada de 20 de junho de 1561. Portanto, foi escrita pelo menos três anos (ou quase) antes da construção do colégio que daria origem a São Paulo. O autor menciona um incidente, envolvendo João Ramalho, tratado posteriormente por outros clérigos, em outras correspondências. Em certa ocasião, o padre Leonardo Nunes dirigiu-se a determinada aldeia, cujos moradores já estavam catequizados, para rezar missa. Ao começar a celebração, todavia teria sido ameaçado, com um pau, pelo nosso personagem, a quem havia excomungado tempos atrás. Como seria de se esperar, interrompeu a cerimônia litúrgica. Exigiu, para rezar a missa, que João Ramalho se retirasse. Este, a princípio, recusou-se, mas depois, ante a insistência dos presentes, saiu dali.

Finda a celebração, todavia, o truculento aventureiro quis tirar a desforra. Tentou agredir Leonardo Nunes, sendo contido por várias pessoas. Seria, óbvio, briga desigual. Isso se o padre aceitasse brigar (o que, óbvio, não aceitou). Afinal, João Ramalho era um gigante, se comparado ao rechonchudo, mas frágil sacerdote. A agressão somente não se consumou, dada a intervenção de uma índia doutrinada, que não somente condenou a atitude agressiva do nosso personagem, como se ofereceu para apanhar no lugar de Leonardo Nunes. Claro que João Ramalho não aceitou a troca e resolveu partir, com a intenção de tirar desforra do agravo que entendia ter recebido, em outra ocasião.

Pero Correa narrou assim o incidente (com as devidas adaptações ao seu texto): “(...) Quiseram tratar mal nosso Padre. O ameaçador foi um homem que há 40 anos está nesta terra, tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal. Anda excomungado. O Padre não quis fazer missa com ele. Depois que esta acabou, quis maltratá-lo, porque ele é possante. Mas a índia (doutrinada) pregou muito rijo e, com grande fé, ofereceu-se para padecer do castigo em lugar do Padre, caso esse se cumprisse. Eu não me achava ali, mas contaram-me (o incidente) dois irmãos, que conheciam muito bem a língua dos índios, que acompanhavam o Padre: um deles chama-se Manuel de Chaves e o outro, Fernando, um moço entre 15 a 18 anos”.

O Irmão Diogo Jacome deu sua versão desse mesmo incidente, em carta que escreveu, um ano depois (em 1552). “ (...) Quis o nosso Padre ir até a uma aldeia, situada a dez léguas daqui, para dizer missa a seus moradores, que há um ano ou dois não vêem Deus e nem o querem ver. E estando lá, fazendo a celebração, entrou uma pessoa que há 20 ou 30 anos, está em pecado mortal, excomungado pelo Vigário da terra por sua obstinação. O Padre mandou que saísse, pois não podia celebrar com ele presente. O homem saindo, saíram, também, com ele dois filhos seus da terra, que se determinaram que, tão logo acabasse a missa, lhe dariam uma surra. O homem pediu ao Padre que não o condenasse, que era melhor cristão que ele e que fazia muitas boas obras. Mas não disse se estava apartado do pecado. Porém vieram os filhos, que são uns homens selvagens, com suas armas, para tirarem desforra do Padre. Este ficou de joelhos diante deles, preparado para receber o que viesse...”

O autor da carta não revelou se o padre Leonardo Nunes chegou, ou não, a ser agredido. Presume-se que não. Nota-se que esta carta é nova versão do mesmo fato. O Padre José de Anchieta também se referiu a esse incidente, citando vários detalhes, e destacando, sobretudo, o fato de João Ramalho ser excomungado e viver mais de 40 anos em pecado mortal.

Anos depois, Manuel da Nóbrega se empenhou pela anulação da excomunhão do outrora inimigo dos jesuítas. E não somente isso. Celebrou o casamento de João Ramalho com Bartira, que fora batizada com o nome de Isabel Dias, além de batizar o cacique Tibiriçá e os nove filhos do aventureiro português  com a agora legítima esposa.

Raimundo de Menezes, em seu livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964), tem outra versão desse incidente. Escreve: “Uma manhã, a coisa tomou aspecto muito sério. O padre, tendo ido dizer missa na igrejinha do povoado, viu entre os presentes João Ramalho e mandou expulsá-lo do templo. Foi a conta. Saiu um sarilho de todos os diabos. Os filhos de João Ramalho (que não eram poucos) resolveram tomar um desforço. Lá apareceram armados de trabuco, dispostos a matar o jesuítas corajoso. E foram entrando. Na frente, André, o mais velho. Depois os outros: Vitório, Antonio, Marcos, João. Em casa, ficaram apenas as meninas: Joana, Margarida e Antonia”.

E a narrativa prossegue: “Quando Bartira soube de que planejavam os filhos, foi atrás, e meteu-se no meio. Desarmou-os. Fê-los retroceder. Foi água na fervura. Desistiram do seu intento. E só assim escapou com vida o padre Leonardo Nunes”. Qual das quatro versões é a correta? Cada um que eleja a sua. É a tal história: quem conta um conto, aumenta um ponto...   


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