Haja imaginação!
Pedro
J. Bondaczuk
A aparência física de
João Ramalho é – entre tantas coisas que cercam a vida e as ações dessa figura
lendária da História do Brasil – um dos aspectos que mais espicaçam minha
curiosidade, embora não haja a mais remota chance dela vir a ser saciada. Como
era esse mítico aventureiro? Era louro ou moreno, alto ou baixo, gordo ou
magro, de olhos azuis ou de outra cor? Ninguém sabe. Só souberam desses
detalhes os que conviveram com ele, porém...
Afinal, a fotografia só foi inventada quase quatrocentos anos depois que
ele morreu e não consta que algum eventual pintor tenha registrado seus traços
numa tela.
Vi várias gravuras
mostrando como seria seu aspecto, mas tenho absoluta certeza que são, todas
elas, meros frutos da imaginação de quem as produziu. Disso não tenho a mais
remota dúvida. Como tantos que as imaginaram, posso, também, imaginar como ele
era nas várias fases da sua vida: moço, maduro e velho. Raimundo de Menezes, no
livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964), relata como o
“imaginou” (afinal, não foi contemporâneo do aventureiro e, portanto, não tem
como saber como ele era): “João Ramalho foi uma autêntica figura de novela.
Deixara crescer a barba descuidada. Vivendo no mato, no meio da indiada, pouco
ligava à indumentária. Era truculento, despótico, dominado pelos modos
desabridos. Em conseqüência, não havia quem não o temesse”.
A primeira parte dessa
descrição não me diz nada. Posso imaginar um perfil igual a esse ou outro
totalmente diferente, mas nenhum deles, provavelmente, será o real ou
aproximado dele. Menezes não revelou, por exemplo, em seu relato, sequer o
óbvio quando se quer descrever alguém: a cor de seus cabelos e de seus olhos, a
altura, o peso (estimado) e coisas triviais do tipo, sem as quais não é
possível sequer imaginar como era quem quer que seja. Quanto à segunda parte do
seu relato, a que se refere ao seu temperamento, esta é mais verossímil. Pelo
menos, os dados que mencionou conferem com os mencionados por jesuítas – principalmente
José de Anchieta e Manuel da Nóbrega – em sua correspondência. De acordo com
esses sacerdotes, João Ramalho era, mesmo, um sujeito truculento, despótico e
de modos desabridos. Pudera! O que esperar de um analfabeto, inculto, mal educado,vivendo por tantos e tantos anos
nas selvas, afastado da civilização, no meio de índios, tendo de assumir suas
maneiras de ser e de agir?
Sabe-se – já que ele
próprio teria relatado isso aos jesuítas – que após o naufrágio, o aventureiro
português foi resgatado pela tribo dos Guaianazes. Seu encontro com o cacique
Tibiriçá e posterior relacionamento com Bartira não se deu, portanto, nessa
ocasião. Raimundo de Menezes narra como isso aconteceu (provavelmente, supôs
que foi assim, já que não menciona fontes da época): “Um dia, andejando sempre,
galgou a (serra de) Paranapiacaba e vei bater nas margens de Guapituba, onde
conheceu o cacique Tibiriçá, com quem fez boa amizade. O aventureiro apreciou o
lugar. Resolveu ficar. Aquilo por ali estava cheio de ‘índias passivas e
ofertantes que, andavam nuas e não sabiam se negar a ninguém’. Uma, porém, no
meio de tantas, mexeu-lhe com o coração. Chamava-se Bartira. Além de bonita,
sendo filha do cacique Tibiriçá, era um bom partido. João Ramalho não vacilou.
Abandonou as demais e ficou com ela. Tornou-a predileta. O chefe da tribo
gostou.Ter um branco como genro era uma incomensurável honraria para a
família”.
As coisas ocorreram,
mesmo, dessa forma? Como saber? Resta-me acreditar, pois Raimundo de Menezes
deve ter se baseado em algum dado concreto, documento ou sabe-se lá o quê, para
chegar a essa conclusão. Mas há uma série de indagações, que jamais serão
respondidas, a espicaçar o pesquisador histórico. Por exemplo, João Ramalho,
quando o navio em que viajava naufragou na costa de São Vicente, desconhecia,
óbvio, o idioma dos indígenas que o socorreram. Como ele fez para se comunicar?
E o que foi feito dos seus companheiros de viagem? Foram também resgatados?
Morreram afogados? Foram mortos pelos índios, que eram antropófagos, como José
de Anchieta relatou em suas cartas e devorados por eles? Em caso afirmativo,
por que os indígenas pouparam João Ramalho? E mais, por que lhe ofertaram as
filhas, para que este mantivesse relações sexuais com elas?
E após subir a serra e
conhecer a tribo chefiada por Tibiriçá, há dezenas e dezenas de outras questões
no ar. Os comandados desse cacique, por exemplo, falavam a mesma língua dos
Guianazes do litoral? Eram aliados destes? Se eram, João Ramalho se valeu de
alguma recomendação do chefe da tribo que o resgatou do naufrágio a
Tibiriçá? Como se vê, são perguntas,
perguntas e mais perguntas sobre esse misterioso personagem, mais para lendário
do que para real, que o tornam ainda mais fascinante e misterioso. O que se
sabe a seu respeito data a partir de 1532, quando do seu contato com Martim
Afonso de Souza e quando se relacionou com jesuítas – relacionamento
inicialmente conflituoso e, posteriormente, benéfico para as duas partes –
eventos dos quais há fartos registros escritos. Antes... Haja imaginação!
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