Friday, August 01, 2014

Haja imaginação!

Pedro J. Bondaczuk

A aparência física de João Ramalho é – entre tantas coisas que cercam a vida e as ações dessa figura lendária da História do Brasil – um dos aspectos que mais espicaçam minha curiosidade, embora não haja a mais remota chance dela vir a ser saciada. Como era esse mítico aventureiro? Era louro ou moreno, alto ou baixo, gordo ou magro, de olhos azuis ou de outra cor? Ninguém sabe. Só souberam desses detalhes os que conviveram com ele, porém...  Afinal, a fotografia só foi inventada quase quatrocentos anos depois que ele morreu e não consta que algum eventual pintor tenha registrado seus traços numa tela.

Vi várias gravuras mostrando como seria seu aspecto, mas tenho absoluta certeza que são, todas elas, meros frutos da imaginação de quem as produziu. Disso não tenho a mais remota dúvida. Como tantos que as imaginaram, posso, também, imaginar como ele era nas várias fases da sua vida: moço, maduro e velho. Raimundo de Menezes, no livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964), relata como o “imaginou” (afinal, não foi contemporâneo do aventureiro e, portanto, não tem como saber como ele era): “João Ramalho foi uma autêntica figura de novela. Deixara crescer a barba descuidada. Vivendo no mato, no meio da indiada, pouco ligava à indumentária. Era truculento, despótico, dominado pelos modos desabridos. Em conseqüência, não havia quem não o temesse”.

A primeira parte dessa descrição não me diz nada. Posso imaginar um perfil igual a esse ou outro totalmente diferente, mas nenhum deles, provavelmente, será o real ou aproximado dele. Menezes não revelou, por exemplo, em seu relato, sequer o óbvio quando se quer descrever alguém: a cor de seus cabelos e de seus olhos, a altura, o peso (estimado) e coisas triviais do tipo, sem as quais não é possível sequer imaginar como era quem quer que seja. Quanto à segunda parte do seu relato, a que se refere ao seu temperamento, esta é mais verossímil. Pelo menos, os dados que mencionou conferem com os mencionados por jesuítas – principalmente José de Anchieta e Manuel da Nóbrega – em sua correspondência. De acordo com esses sacerdotes, João Ramalho era, mesmo, um sujeito truculento, despótico e de modos desabridos. Pudera! O que esperar de um analfabeto, inculto,  mal educado,vivendo por tantos e tantos anos nas selvas, afastado da civilização, no meio de índios, tendo de assumir suas maneiras de ser e de agir?

Sabe-se – já que ele próprio teria relatado isso aos jesuítas – que após o naufrágio, o aventureiro português foi resgatado pela tribo dos Guaianazes. Seu encontro com o cacique Tibiriçá e posterior relacionamento com Bartira não se deu, portanto, nessa ocasião. Raimundo de Menezes narra como isso aconteceu (provavelmente, supôs que foi assim, já que não menciona fontes da época): “Um dia, andejando sempre, galgou a (serra de) Paranapiacaba e vei bater nas margens de Guapituba, onde conheceu o cacique Tibiriçá, com quem fez boa amizade. O aventureiro apreciou o lugar. Resolveu ficar. Aquilo por ali estava cheio de ‘índias passivas e ofertantes que, andavam nuas e não sabiam se negar a ninguém’. Uma, porém, no meio de tantas, mexeu-lhe com o coração. Chamava-se Bartira. Além de bonita, sendo filha do cacique Tibiriçá, era um bom partido. João Ramalho não vacilou. Abandonou as demais e ficou com ela. Tornou-a predileta. O chefe da tribo gostou.Ter um branco como genro era uma incomensurável honraria para a família”.

As coisas ocorreram, mesmo, dessa forma? Como saber? Resta-me acreditar, pois Raimundo de Menezes deve ter se baseado em algum dado concreto, documento ou sabe-se lá o quê, para chegar a essa conclusão. Mas há uma série de indagações, que jamais serão respondidas, a espicaçar o pesquisador histórico. Por exemplo, João Ramalho, quando o navio em que viajava naufragou na costa de São Vicente, desconhecia, óbvio, o idioma dos indígenas que o socorreram. Como ele fez para se comunicar? E o que foi feito dos seus companheiros de viagem? Foram também resgatados? Morreram afogados? Foram mortos pelos índios, que eram antropófagos, como José de Anchieta relatou em suas cartas e devorados por eles? Em caso afirmativo, por que os indígenas pouparam João Ramalho? E mais, por que lhe ofertaram as filhas, para que este mantivesse relações sexuais com elas?

E após subir a serra e conhecer a tribo chefiada por Tibiriçá, há dezenas e dezenas de outras questões no ar. Os comandados desse cacique, por exemplo, falavam a mesma língua dos Guianazes do litoral? Eram aliados destes? Se eram, João Ramalho se valeu de alguma recomendação do chefe da tribo que o resgatou do naufrágio a Tibiriçá?  Como se vê, são perguntas, perguntas e mais perguntas sobre esse misterioso personagem, mais para lendário do que para real, que o tornam ainda mais fascinante e misterioso. O que se sabe a seu respeito data a partir de 1532, quando do seu contato com Martim Afonso de Souza e quando se relacionou com jesuítas – relacionamento inicialmente conflituoso e, posteriormente, benéfico para as duas partes – eventos dos quais há fartos registros escritos. Antes... Haja imaginação!


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