Rude filho sem retoques
da natureza
Pedro
J. Bondaczuk
Os relatos das ações de
João Ramalho, rude filho sem retoques da natureza, após seus primeiros contatos
com os conterrâneos portugueses, oscilam da condenação duríssima e explícita
aos seus atos e modos de vida – principalmente por parte dos jesuítas, um dos
quais chegou a excomungá-lo – ao posterior reconhecimento, quase unânime, da
sua importância para o sucesso de colonização do Brasil, principalmente da
Capitânia de São Vicente, deixando claro que, sem a sua intervenção, isso
sequer seria possível. E esse seu resgate contou com a participação dos que
mais o criticaram e combateram, ou seja, dos próprios sacerdotes da Companhia
de Jesus.
Sobre suas atividades
antes do encontro com Martim Afonso de Souza, que se deu por volta de 1532, a
enciclopédia eletrônica Wikipédia assim se refere a elas, embora sem citar
fontes: “Com os filhos, estabeleceu postos no litoral para fazer comércio com
europeus, vendendo índios prisioneiros para serem escravizados; construindo
bergantins, reabastecendo os navios em trânsito e negociando o pau-brasil”.
Como se vê, João Ramalho se virou muito bem para um sujeito inexperiente e
analfabeto. Demonstrou notável espírito de iniciativa, sobretudo aguçado tino
para negócios. Pode-se até dizer, sem forçar a barra, que ele já promovia, á
sua maneira, por própria conta, a colonização daquela área antes mesmo da
chegada de Martim Afonso, tendo em vista, claro, não a prestação de serviços
para a Coroa, mas a obtenção de lucros, para enriquecer, talvez visando
possível retorno a Portugal. Vá se saber!
Antes que me perguntem,
informo que “bergantim”, que o aventureiro construía no litoral – presume-se
que essa e outras das atividades desenvolvidas por ele, citadas pela Wikipédia,
eram anteriores ao seu encontro com Tibiriçá e envolvimento sexual com Bartira
– era uma espécie de pequeno navio de dois mastros e com uma única e pequena
cobertura. Percebe-se, pois, que não se tratava de um vagabundo qualquer,
querendo viver às custas alheias. Era, à sua maneira, um sujeito ativo,
dinâmico e realizador, a despeito de brutal e tirânico. Pudera! Um sujeito
bonzinho, de educação refinada, não sobreviveria talvez um único dia naquele
ambiente hostil, primitivo e selvagem.
Wikipédia traz à baila
algumas ações sumamente cruéis – enfaticamente condenadas pelos jesuítas, que
igualmente estavam furiosos com os obstáculos que aquelas pessoas impunham à
conversão dos silvícolas à fé católica. Informa: “Nas excursões pelo interior,
para capturar índios para serem vendidos como escravos, os filhos de João
Ranalho, mamelucos com metade de sangue indígena, comportavam-se com extrema
crueldade”. Provavelmente essa prole, mencionada pela enciclopédia eletrônica,
era a gerada com fêmeas guaianazes, anteriores, portanto, à ligação do
aventureiro com a tribo chefiada pelo cacique Tibiriçá, que habitava o
Planalto.
Interessante é o relato
da Wikipédia do encontro de João Ramalho com Martim Afonso de Souza. Embora não
mencione as fontes em que se baseou, se presume que elas existam e sejam
relatos da equipe do representante da Coroa. Acredito que sim. A enciclopédia
assim descreve esse contato: “O reencontro com os portugueses foi
surpreendente. Estes esperavam uma batalha contra um grande número de índios,
que caminhavam em direção a São Vicente. Em vez de uma batalha, receberam João
Ramalho, que passou a usar de sua grande influência sobre a tribo para ajudar
seus conterrâneos”. O que levou o tirânico e lendário aventureiro a agir assim?
Por que não atacou Martim Afonso e os colonos que o acompanhavam? Se o fizesse,
exterminaria, com absoluta certeza, a todos com facilidade, já que contava com
superioridade de forças, respaldado por milhares de guerreiros indígenas.
Provavelmente, João
Ramalho não atacou o representante da Coroa e o punhado de portugueses enviados
para a região com a missão de colonizá-la, por não vislumbrar nenhum risco às
atividades daquele relativamente escasso contingente. É até possível que
pressentisse imensas possibilidades de lucro. Tem que se levar em conta,
também, a habilidade diplomática de Martim Afonso. Afinal, este veio a se
tornar amigo de João Ramalho. Tanto que, quando o cacique Tibiriçá se converteu
ao cristianismo, e foi batizado, adotou o nome de Martim Afonso, certamente sob
influência do controvertido genro.
Não sei vocês, mas da
minha parte estou curtindo muito escrever sobre esse enigmático personagem,
tendo o cuidado de ser o mais didático possível, mesmo que, para isso, tenha
que estender o texto muito além do inicialmente pretendido. À medida que avanço
nas pesquisas, mais surpreso fico com essa figura enigmática e misteriosa –
benigna, para uns, demoníaca para outros - da qual é quase impossível separar
fatos do que não passa de mera lenda. Acredito que, à minha maneira, estou
contribuindo, de alguma forma, para melhor entendimento de importantíssimo
capítulo da nossa História que não é sequer tratado nas escolas.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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