Fontes duvidosas e
controversas
Pedro
J. Bondaczuk
As fontes de informação
sobre a vida, a obra e o comportamento de João Ramalho dividem, até hoje,
historiadores das mais diversas tendências. Uns (suponho que a minoria)
consideram-nas suficientes e satisfatórias, e por isso não as contestam.
Todavia, em seus relatos sobre o período quinhentista da História do Brasil,
mencionam apenas de passagem essa figura imponente, tão importante para a
colonização dessas terras tropicais, cuja importância até admitem, mas de quem
tratam tão pouco. Por que? Presumo que seja por não confiarem, contrariando o que afirmam, os registros
existentes, que tratam do assunto.
Outra corrente de
historiadores descrê, liminarmente, da veracidade do que restou registrado
sobre vida, obra e comportamento de João Ramalho. Por que? Pelo fato dos
autores dessas fontes não serem considerados por eles como “insuspeitos” – por
detestarem, explícita e ostensivamente, os hábitos e a figura do misterioso e
semi-selvagem aventureiro português. Os padres europeus não viam nessa figura
insólita nenhum mérito, sequer a mais remota virtude. Isso tudo, a despeito de
haverem revogado sua excomunhão (creio que por razões puramente
“diplomáticas”). E, principalmente, apesar deste haver salvado, e em mais de
uma ocasião, seus clericais pescoços, ao defender, com destreza, coragem e
competência, a nascente vila de São Paulo de Piratininga dos ataques de
multidões de índios hostis. que queriam expulsar os brancos invasores do
planalto. Refiro-me, claro, aos jesuítas, sobretudo a José de Anchieta, que foi
quem mais vezes tratou de João Ramalho em sua vasta correspondência. Essas
fontes são consideradas, por uma grande corrente de historiadores, parciais e
suspeitas. Os membros da Companhia de Jesus, ressalte-se, foram os que mais
escreveram sobre o aventureiro português, mas, invariavelmente, em tom
negativo, de inequívoca condenação.
Raimundo de Menezes, em
seu livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964), assim se
refere a tais “testemunhas”: “Os hábitos adquiridos em decênios de vida solta,
incompatibilizaram-no (a João Ramalho) com os jesuítas, de cujas crônicas saiu
mal notado”. Essa correspondência jesuística sobreviveu, praticamente intacta
ao tempo e pode ser acessada por qualquer pesquisador diligente sem muita
dificuldade. Ocorre, como destaquei, que muitos historiadores consideram, por
motivos óbvios, essa fonte como “poluída”, como “parcial” e, portanto,
como “não confiável”, dada sua evidente
falta de isenção.
Muito se fala sobre um
suposto testamento que João Ramalho teria feito, uns sete meses antes da sua
morte, mas que ninguém sabe onde teria ido parar. Nele, estaria relatada toda a
vida do aventureiro, que a teria ditado a um escrivão. Mesmo que este documento
seja algum dia encontrado, o considero inconsistente, pela mesma razão da
inconsistência das crônicas dos jesuítas: falta de imparcialidade. Claro que
João Ramalho relataria apenas o que lhe fosse conveniente, ou seja, favorável.
Além do que o relato dependeria exclusivamente da memória do aventureiro. Ora,
sem nenhum menosprezo aos idosos, é duvidoso que um homem de 87 anos se
lembrasse do que fez, quando e com quem esteve ao longo de tanto tempo, tudo em
detalhes e com rigorosa exatidão e lucidez. Mesmo que por uma dessas incríveis
raridades se lembrasse, quem pode assegurar que o escrivão transcreveu esses
relatos exatamente como os ouviu?
Ocorre que esse
testamento nunca foi encontrado. Apenas a título de registro, transcrevo como
Raimundo de Menezes tratou desse episódio em seu livro, que citei tantas vezes:
“O velho João Ramalho tratou de preparar-se para enfrentar o momento fatal que
haveria de vir, mais dias menos dias. Mandou chamar à sua presença o tabelião
Lourenço Vaz, naquele 3 de maio de 1580. Conversaram, os dois, longamente.
Soube-se, apenas, que no mesmo dia, o funcionário regressaria à casa do ex-Rei
do Planalto, armado de enorme livro e com a sua pena de pato. Acompanhavam-no o
juiz ordinário Pedro Dias e quatro testemunhas. Vinham solenes e carrancudos”.
Raimundo de Menezes,
baseado em não sei o quê, prossegue, assim, seu relato: “E João Ramalho ditou
seu testamento. O documento famoso ficou trancado nas notas do tabelião da Vila
de São Paulo. Narrava toda sua vida, uma vida novelesca e cheia de altos e
baixos. Frei Gaspar da Madre de Deus revelou mais tarde que possuía uma cópia
do documento original, mas o certo é que pouquíssimas pessoas manusearam o
testamento tão discutido”. Que ele existiu, embora não tenha provas, tenho
plena convicção, porquanto foi identificado, até pelo nome, quem o redigiu, além
do juiz que esteve presente quando da lavratura. Mas... onde foi parar o tal
testamento? Cadê a cópia que o frei Gaspar da Madre de Deus garantiu que tinha?
Ninguém sabe e ninguém viu. Esse é mais um dos tantos mistérios que cercam a
vida e a atuação de um personagem tão importante – mais até do que Pedro
Álvares Cabral, Martim Afonso de Souza, Mem, de Sá etc.etc.etc. – da imprecisa e mal contada história do nosso
país.
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