O dia em que Hiroshima “conheceu” a bomba A
Pedro
J. Bondaczuk
A maldade humana não
tem limites. Quando se pensa que todos expedientes de violência e destruição já
foram utilizados, surge um outro, mais terrível que o anterior, e outro, e
outro e mais outro, em uma escala sem fim. A data de 6 de agosto assinala um
desses momentos trágicos da humanidade e parece que as lições dessa monumental
tragédia não foram aprendidas por quase ninguém. Refiro-me à destruição, e em
questão de reles minutos, em um piscar de olhos, da cidade japonesa de
Hiroshima. Eram exatamente oito horas e quinze minutos da manhã do dia 6 de
agosto de 1945 quando tudo se deu.
As pessoas iniciavam as
atividades rotineiras nessa cidade, a oitava do Japão em população, localizada
na maior ilha do arquipélago, a de Honshu. Apesar da guerra, pouca coisa havia
que lembrasse o terrível conflito, que já se arrastava há quatro anos, com
bombardeios quase diários às grandes povoações japonesas. Os dois maiores
centros urbanos do país, Tóquio-Yokohama e Osaka-Kobe, eram submetidos a
ataques convencionais possivelmente inéditos em toda a história. As
super-fortalezas voadoras B-29 despejavam, com incrível pontualidade, toneladas
e mais toneladas de explosivos nessas duas áreas.
Mais de 150 quilômetros
quadrados, densamente povoados, foram literalmente queimados. Dois milhões de
prédios estavam destruídos. Vistas do alto, essas áreas metropolitanas, outrora
cheias de vida e de agitação, não passavam de imensas pilhas de escombros. O
cenário era desolador, lembrando uma paisagem lunar. Mais de treze milhões de
pessoas perderam seus lares. Num único ataque na região, feito por mil aviões e
que durou uma noite inteira, 74 mil pessoas morreram ou receberam ferimentos
graves. Estranhamente, Hiroshima foi poupada desse destino.
Muitos dos seus
moradores diziam, até cheios de tranqüilizadora certeza, que os
norte-americanos estavam propositalmente conservando intacta a cidade para
quando a guerra acabasse. Os comentários que corriam eram que ela seria uma
zona residencial por excelência no período de reconstrução que viria a seguir.
Nem o mais pessimista dos cidadãos poderia, sequer de longe, imaginar o destino
que estava reservado para Hiroshima apenas uma hora mais tarde.
O dia havia amanhecido
com brilhante sol de verão. Era segunda-feira e várias pessoas já haviam
deixado suas casas, rumo ao trabalho. Tudo recendia a normalidade e calma. A
guerra como que não existia para essa gente. A única referência ao conflito,
nos últimos tempos, havia sido representada por estranhos panfletos, lançados
aos milhares (depois se soube que foram quinhentos mil) dois dias antes.
Eles diziam somente:
“Esta cidade será destruída, a menos que seu governo se renda”. Ninguém levou
isso a sério. Muitos até riram dessa grosseira tentativa de guerra psicológica.
Ainda se os aviões, que jogaram esses avisos, houvessem desovado uma bomba ou
mais, daria para acreditar. Nada disso, porém, aconteceu. Nada, além dos
panfletos, foi lançado sobre os habitantes locais. As informações que corriam
em Hiroshima, por essa época, davam conta de vitórias espetaculares das tropas
imperiais em várias batalhas do Pacífico. A população estava certa que o
conflito estava chegando ao fim. E se o Japão vencesse ou não a cidade teria,
certamente, destino muito melhor do que outras tantas povoações urbanas de
grande concentração populacional. Esse era o pensamento geral dos habitantes
locais. Não havia, pois, nada a temer...
De repente, o “inferno”
desencadeou-se sobre a pacata Hiroshima. Uma explosão ofuscante, com o brilho
tão intenso quanto o de mil sóis, mas com um diâmetro restrito, de somente 110
metros, atingiu a cidade. Foi uma simples fração de segundo, bastante para
causar a maior destruição jamais vista por qualquer olho humano. Um calor de
300 mil graus centígrados originou-se no ponto de impacto. No raio de um
quilômetro, nada resistiu. Pedras queimaram como se fossem de betume. Pontes de
aço transformaram-se em líquido incandescente. Telhados sumiram, simplesmente,
como que num hediondo passe de mágica. O rio que corta a cidade ferveu,
elevando o vapor para o alto. Prédios inteiros de granito derreteram, como
manteiga posta ao fogo.
Pessoas evaporaram,
deixando, como único vestígio, suas silhuetas “impressas”, como negativos de
raios-x, nas paredes e nas ruas. No espaço de tempo que alguém leva para piscar
os olhos, seis quilômetros quadrados do centro de Hiroshima haviam simplesmente
desaparecido. Um cheiro adocicado e enjoativo impregnou o ar. O céu azul, no
qual brilhava um sol de verão, adquiriu coloração amarelo-escura. Uma imensa
nuvem de fumaça, em formato de cogumelo, elevou-se a uma altura de 15
quilômetros. Tão alto que condensou o vapor de água e poucos minutos depois fez
desabar sobre a cidade estranha e cruel chuva preta. Suas gotas eram pegajosas
como piche e tinham o tamanho de calhaus, carregadas de poeira radioativa. À
medida que atingiam a pele, provocavam
dolorosas queimaduras nas pessoas, que ficavam com manchas vermelhas.
A população foi colhida
totalmente de surpresa, sem que ninguém pudesse fazer nada para escapar da
repentina ocorrência. O impacto da explosão provocou terrível vento, com a
força de vários furacões conjugados, com velocidade de 800 quilômetros por
hora. As poucas edificações que haviam permanecido de pé acabaram por ruir. As
pessoas que buscaram abrigo sob as árvores nos parques, foram atingidas por
troncos e galhos, vindo a morrer esmagadas por eles. Homens, mulheres e
crianças vagavam aturdidos, sem rumo, como se fossem robôs, sem atinar com o
que havia acontecido. O medo os havia paralisado, a ponto de nem dor estarem
sentindo. Os feridos contavam-se aos milhares. Pareciam monstros imaginários de
outros planetas, como os retratados pelos autores de ficção científica.
Todos haviam como que
retornado à inocência do Éden, isto é, estavam nus. As vestes haviam sido
queimadas, ou arrancadas pelo vento originado pela explosão. Nos corpos
calcinados, era impossível se distinguir homens de mulheres. Alguns tinham as
“marcas” das orelhas e do nariz impressas na face. Somente isso. As feições em
nada lembravam as humanas. Algumas pessoas, numa quase instintiva
solidariedade, a despeito de estarem também gravemente feridas, buscavam ajudar
os mais atingidos. Mas assim que tocavam os corpos agonizantes, viam,
horrorizadas, pedaços de carne saírem em suas mãos. A pele fumegava, como
brasa, ao contato da água.
Mães procuravam,
aturdidas, por seus filhos e não os encontravam. O ar estava impregnado com o
cheiro da morte, de carne queimada e os sons de gritos, de suspiros de agonia e
de lamúrias formavam sinistra sinfonia. E pensar que todo aquele horror fora
perpetrado por homens contra homens... “Meu Deus, o que fizemos!”, foi a
exclamação de horror e de asco do co-piloto da super-fortaleza voadora B-29,
capitão Robert Lewis, ao ver elevar-se para os céus a gigantesca nuvem, em
forma de cogumelo, após a explosão da “Litle Boy”, nome dado pela tripulação à
bomba.
Mas se quem executou a
tarefa de bombardeio a Hiroshima apresentou esse conflito de consciência, quem
a ordenou, o presidente Harry Truman, parece não haver registrado nenhuma
emoção maior. É o que se deduz de uma declaração que deu ao escritor John
Tolland, autor do livro “The Rising Sun”. Perguntado se sentira alguma angústia
antes de ordenar o lançamento da primeira bomba A sobre uma cidade densamente
povoada, o político, simplesmente, respondeu: “Mas claro que não! Tomei a
decisão assim!”, e estalou os dedos, para exemplificar que ordenou o ataque com
toda a convicção.
Aliás, para Truman, a
utilização da bomba atômica, desde o início, quando começaram as pesquisas para
seu desenvolvimento, era algo que estava em suas cogitações. Apesar de haver
sido dito aos cientistas que desenvolviam a arma que esta não seria usada na
guerra, e que serviria, apenas, como fator de dissuasão, para amedrontar o
inimigo, para o presidente norte-americano ela não passava de elemento a mais
no arsenal do seu país. Algo como um novo tanque, uma nova metralhadora ou um
novo tipo de granada. Enfim, um armamento como outro qualquer.
Doze dias antes do
primeiro teste com a bomba, em 4 de julho de 1945, Truman havia ordenado, em
Potsdam, onde se encontrava para firmar um tratado com Stalin e com Churchill,
que a nova arma fosse entregue à Força Aérea. A partir daí, os destinos de
Hiroshima e de Nagasaki estavam definitivamente selados. Ninguém entrega uma
poderosa arma desse porte a unidades de combate se não for para que seja
efetivamente usada. No próprio dia da primeira explosão de testes, no Novo
México, algumas unidades das bombas atômicas chegavam, cercadas do máximo
sigilo, à Base de Tinian. Consta que por muito pouco elas não foram destruídas
em um ataque feito pelos japoneses ao veículo que as transportava.
No dia 27 de julho, com
a poderosa arma devidamente testada e com a Força Aérea já de posse de algumas
unidades, o presidente norte-americano emitiu o chamado “Ultimato de Potsdam”
aos japoneses. Ameaçava o Japão de “extrema destruição” se não houvesse uma
“rendição incondicional”. Contam, alguns historiadores, que o imperador
Hirohito já estava estabelecendo negociações, através dos soviéticos, visando
colocar fim ao conflito. Mesmo assim, a
bomba foi detonada.. Por que? Para mostrar aos adversários do futuro (já então
existia clima de antagonismo entre os ainda aliados, Estados Unidos e União
Soviética) o seu poderio? Por uma questão de vaidade, visando demonstrar que a
tecnologia norte-americana era melhor, capaz de desenvolver a arma definitiva?
Será que Truman tinha
consciência exata sobre até que ponto ia o poder de destruição desse artefato?
O presidente norte-americano foi informado, posteriormente, com exatidão, sem a
omissão de nenhum detalhe, sobre o tamanho da tragédia de Hiroshima? São
perguntas cujas respostas, provavelmente, o mundo jamais irá conhecer, à medida
que o tempo passa e que esse ato de extrema crueldade é esquecido, substituído
por outros ainda piores e mais cruéis praticados por homens contra outros
homens.. Qual o limite da maldade humana? Existe algum? Se existir... é
desconhecido.
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