Wednesday, August 06, 2014

O dia em que Hiroshima “conheceu” a bomba A

Pedro J. Bondaczuk

A maldade humana não tem limites. Quando se pensa que todos expedientes de violência e destruição já foram utilizados, surge um outro, mais terrível que o anterior, e outro, e outro e mais outro, em uma escala sem fim. A data de 6 de agosto assinala um desses momentos trágicos da humanidade e parece que as lições dessa monumental tragédia não foram aprendidas por quase ninguém. Refiro-me à destruição, e em questão de reles minutos, em um piscar de olhos, da cidade japonesa de Hiroshima. Eram exatamente oito horas e quinze minutos da manhã do dia 6 de agosto de 1945 quando tudo se deu.

As pessoas iniciavam as atividades rotineiras nessa cidade, a oitava do Japão em população, localizada na maior ilha do arquipélago, a de Honshu. Apesar da guerra, pouca coisa havia que lembrasse o terrível conflito, que já se arrastava há quatro anos, com bombardeios quase diários às grandes povoações japonesas. Os dois maiores centros urbanos do país, Tóquio-Yokohama e Osaka-Kobe, eram submetidos a ataques convencionais possivelmente inéditos em toda a história. As super-fortalezas voadoras B-29 despejavam, com incrível pontualidade, toneladas e mais toneladas de explosivos nessas duas áreas.

Mais de 150 quilômetros quadrados, densamente povoados, foram literalmente queimados. Dois milhões de prédios estavam destruídos. Vistas do alto, essas áreas metropolitanas, outrora cheias de vida e de agitação, não passavam de imensas pilhas de escombros. O cenário era desolador, lembrando uma paisagem lunar. Mais de treze milhões de pessoas perderam seus lares. Num único ataque na região, feito por mil aviões e que durou uma noite inteira, 74 mil pessoas morreram ou receberam ferimentos graves. Estranhamente, Hiroshima foi poupada desse destino.

Muitos dos seus moradores diziam, até cheios de tranqüilizadora certeza, que os norte-americanos estavam propositalmente conservando intacta a cidade para quando a guerra acabasse. Os comentários que corriam eram que ela seria uma zona residencial por excelência no período de reconstrução que viria a seguir. Nem o mais pessimista dos cidadãos poderia, sequer de longe, imaginar o destino que estava reservado para Hiroshima apenas uma hora mais tarde.

O dia havia amanhecido com brilhante sol de verão. Era segunda-feira e várias pessoas já haviam deixado suas casas, rumo ao trabalho. Tudo recendia a normalidade e calma. A guerra como que não existia para essa gente. A única referência ao conflito, nos últimos tempos, havia sido representada por estranhos panfletos, lançados aos milhares (depois se soube que foram quinhentos mil) dois dias antes.

Eles diziam somente: “Esta cidade será destruída, a menos que seu governo se renda”. Ninguém levou isso a sério. Muitos até riram dessa grosseira tentativa de guerra psicológica. Ainda se os aviões, que jogaram esses avisos, houvessem desovado uma bomba ou mais, daria para acreditar. Nada disso, porém, aconteceu. Nada, além dos panfletos, foi lançado sobre os habitantes locais. As informações que corriam em Hiroshima, por essa época, davam conta de vitórias espetaculares das tropas imperiais em várias batalhas do Pacífico. A população estava certa que o conflito estava chegando ao fim. E se o Japão vencesse ou não a cidade teria, certamente, destino muito melhor do que outras tantas povoações urbanas de grande concentração populacional. Esse era o pensamento geral dos habitantes locais. Não havia, pois, nada a temer...

De repente, o “inferno” desencadeou-se sobre a pacata Hiroshima. Uma explosão ofuscante, com o brilho tão intenso quanto o de mil sóis, mas com um diâmetro restrito, de somente 110 metros, atingiu a cidade. Foi uma simples fração de segundo, bastante para causar a maior destruição jamais vista por qualquer olho humano. Um calor de 300 mil graus centígrados originou-se no ponto de impacto. No raio de um quilômetro, nada resistiu. Pedras queimaram como se fossem de betume. Pontes de aço transformaram-se em líquido incandescente. Telhados sumiram, simplesmente, como que num hediondo passe de mágica. O rio que corta a cidade ferveu, elevando o vapor para o alto. Prédios inteiros de granito derreteram, como manteiga posta ao fogo.

Pessoas evaporaram, deixando, como único vestígio, suas silhuetas “impressas”, como negativos de raios-x, nas paredes e nas ruas. No espaço de tempo que alguém leva para piscar os olhos, seis quilômetros quadrados do centro de Hiroshima haviam simplesmente desaparecido. Um cheiro adocicado e enjoativo impregnou o ar. O céu azul, no qual brilhava um sol de verão, adquiriu coloração amarelo-escura. Uma imensa nuvem de fumaça, em formato de cogumelo, elevou-se a uma altura de 15 quilômetros. Tão alto que condensou o vapor de água e poucos minutos depois fez desabar sobre a cidade estranha e cruel chuva preta. Suas gotas eram pegajosas como piche e tinham o tamanho de calhaus, carregadas de poeira radioativa. À medida  que atingiam a pele, provocavam dolorosas queimaduras nas pessoas, que ficavam com manchas vermelhas.

A população foi colhida totalmente de surpresa, sem que ninguém pudesse fazer nada para escapar da repentina ocorrência. O impacto da explosão provocou terrível vento, com a força de vários furacões conjugados, com velocidade de 800 quilômetros por hora. As poucas edificações que haviam permanecido de pé acabaram por ruir. As pessoas que buscaram abrigo sob as árvores nos parques, foram atingidas por troncos e galhos, vindo a morrer esmagadas por eles. Homens, mulheres e crianças vagavam aturdidos, sem rumo, como se fossem robôs, sem atinar com o que havia acontecido. O medo os havia paralisado, a ponto de nem dor estarem sentindo. Os feridos contavam-se aos milhares. Pareciam monstros imaginários de outros planetas, como os retratados pelos autores de ficção científica.

Todos haviam como que retornado à inocência do Éden, isto é, estavam nus. As vestes haviam sido queimadas, ou arrancadas pelo vento originado pela explosão. Nos corpos calcinados, era impossível se distinguir homens de mulheres. Alguns tinham as “marcas” das orelhas e do nariz impressas na face. Somente isso. As feições em nada lembravam as humanas. Algumas pessoas, numa quase instintiva solidariedade, a despeito de estarem também gravemente feridas, buscavam ajudar os mais atingidos. Mas assim que tocavam os corpos agonizantes, viam, horrorizadas, pedaços de carne saírem em suas mãos. A pele fumegava, como brasa, ao contato da água.

Mães procuravam, aturdidas, por seus filhos e não os encontravam. O ar estava impregnado com o cheiro da morte, de carne queimada e os sons de gritos, de suspiros de agonia e de lamúrias formavam sinistra sinfonia. E pensar que todo aquele horror fora perpetrado por homens contra homens... “Meu Deus, o que fizemos!”, foi a exclamação de horror e de asco do co-piloto da super-fortaleza voadora B-29, capitão Robert Lewis, ao ver elevar-se para os céus a gigantesca nuvem, em forma de cogumelo, após a explosão da “Litle Boy”, nome dado pela tripulação à bomba.

Mas se quem executou a tarefa de bombardeio a Hiroshima apresentou esse conflito de consciência, quem a ordenou, o presidente Harry Truman, parece não haver registrado nenhuma emoção maior. É o que se deduz de uma declaração que deu ao escritor John Tolland, autor do livro “The Rising Sun”. Perguntado se sentira alguma angústia antes de ordenar o lançamento da primeira bomba A sobre uma cidade densamente povoada, o político, simplesmente, respondeu: “Mas claro que não! Tomei a decisão assim!”, e estalou os dedos, para exemplificar que ordenou o ataque com toda a convicção.

Aliás, para Truman, a utilização da bomba atômica, desde o início, quando começaram as pesquisas para seu desenvolvimento, era algo que estava em suas cogitações. Apesar de haver sido dito aos cientistas que desenvolviam a arma que esta não seria usada na guerra, e que serviria, apenas, como fator de dissuasão, para amedrontar o inimigo, para o presidente norte-americano ela não passava de elemento a mais no arsenal do seu país. Algo como um novo tanque, uma nova metralhadora ou um novo tipo de granada. Enfim, um armamento como outro qualquer.

Doze dias antes do primeiro teste com a bomba, em 4 de julho de 1945, Truman havia ordenado, em Potsdam, onde se encontrava para firmar um tratado com Stalin e com Churchill, que a nova arma fosse entregue à Força Aérea. A partir daí, os destinos de Hiroshima e de Nagasaki estavam definitivamente selados. Ninguém entrega uma poderosa arma desse porte a unidades de combate se não for para que seja efetivamente usada. No próprio dia da primeira explosão de testes, no Novo México, algumas unidades das bombas atômicas chegavam, cercadas do máximo sigilo, à Base de Tinian. Consta que por muito pouco elas não foram destruídas em um ataque feito pelos japoneses ao veículo que as transportava.

No dia 27 de julho, com a poderosa arma devidamente testada e com a Força Aérea já de posse de algumas unidades, o presidente norte-americano emitiu o chamado “Ultimato de Potsdam” aos japoneses. Ameaçava o Japão de “extrema destruição” se não houvesse uma “rendição incondicional”. Contam, alguns historiadores, que o imperador Hirohito já estava estabelecendo negociações, através dos soviéticos, visando colocar  fim ao conflito. Mesmo assim, a bomba foi detonada.. Por que? Para mostrar aos adversários do futuro (já então existia clima de antagonismo entre os ainda aliados, Estados Unidos e União Soviética) o seu poderio? Por uma questão de vaidade, visando demonstrar que a tecnologia norte-americana era melhor, capaz de desenvolver a arma definitiva?

Será que Truman tinha consciência exata sobre até que ponto ia o poder de destruição desse artefato? O presidente norte-americano foi informado, posteriormente, com exatidão, sem a omissão de nenhum detalhe, sobre o tamanho da tragédia de Hiroshima? São perguntas cujas respostas, provavelmente, o mundo jamais irá conhecer, à medida que o tempo passa e que esse ato de extrema crueldade é esquecido, substituído por outros ainda piores e mais cruéis praticados por homens contra outros homens.. Qual o limite da maldade humana? Existe algum? Se existir... é desconhecido.


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