Sunday, August 10, 2014

Sinceridade chinesa


Pedro J. Bondaczuk


A recente declaração publicada no suplemento econômico do órgão oficial do PC chinês, "Diário do Povo", considerando o marxismo obsoleto e insuficiente para resolver todos os problemas atuais da China, causou sensação em diversas áreas. Afinal, em 35 anos de implantação do atual regime, nunca Pequim pôs tão diretamente em questão a sua pretensa ideologia. Pelo menos não em palavras.

Entretanto, para os que vêm acompanhando a evolução dos fatos que se registram na mais populosa nação do Planeta, essa atitude não se reveste de surpresa tão grande. Era apenas uma questão de tempo para que se cristalizasse em declarações tão claras o que já existia embrionariamente. O que os chineses fizeram não foi nada mais do que acompanhar (posto que com oito anos de atraso) a atitude de rebeldia dos partidos comunistas europeus, que em 30 de junho de 1976 proclamaram o direito de cada agremiação seguir sua própria via para o socialismo. E a China decidiu optar pela sua, embora fosse um pouco mais longe. Expressou em palavras aquilo que estava no pensamento de muita gente, que no entanto temia externar uma opinião desse porte, talvez por receio de que esta viesse a ser interpretada como intolerável "heresia".

O mundo na época em que Karl Marx viveu era muito diferente do de hoje. Não apenas quanto à quantidade de habitantes, mas às questões sociais e políticas. Em 1850, por exemplo, 14 anos antes do pensador alemão encabeçar, em Londres, a constituição da Primeira Internacional, a população mundial era de 1,09 bilhão. Hoje, apenas a China, sozinha, possui maior quantidade de habitantes do que esta (1,27 bilhão). Não existiam meios de comunicação rápidos e ágeis e as notícias chegavam, de um continente a outro, meses após os fatos terem sido gerados. Hoje, a informação chega simultânea aos acontecimentos.

Em 120 anos da existência do marxismo (que hoje é, pretensamente, a ideologia de metade da humanidade), não se viu nenhum resultado tão espetacular que levasse as pessoas à conclusão de que nele estava o caminho para a pretendida justiça social. Ao contrário, os ditos regimes comunistas, especialmente o soviético, desde a década de 20, transformaram-se em meros Estados policiais, em instrumentos de opressão, decepcionando e desencantando os que viam nele exatamente a libertação dos opressores. Desde então, o marxismo-leninismo já vinha mostrando-se inviável.

Veja-se o caso da China, por exemplo. Durante muitos anos, o líder Mao Tsé-Tung procurou massificar o país. Extinguiu tudo o que para ele representasse "manifestação burguesa", abolindo até as patentes militares no Exército. Estabeleceu um "culto à personalidade" (à dele, é claro), como jamais se viu na história, tornando até os seus pensamentos mais banais em dogmas políticos. Não se preocupou em forjar novas lideranças, que conduzissem o país ao indispensável desenvolvimento. Nem mostrou qualquer caminho para modernizar a China. A nação mais populosa do mundo tinha a imperiosa necessidade de queimar etapas, para aumentar o "bolo" da riqueza nacional a ser repartido por tantos comensais. Mas se perdeu em planos quinqüenais irrealistas e inóquos e nos meandros de um burocratismo verborrágico e estúpido.

A morte de Mao, em 9 de setembro de 1976, foi a verdadeira data em que os chineses romperam de vez com o marxismo, pelo menos na sua versão mais conhecida. A ruptura não foi formal, é óbvio, mas se deu em seus corações.   Ocorreu, é lógico, à maneira oriental. Era de se esperar que as transformações se procedessem sem saltos e nem sobressaltos. Mas a ascensão de Deng Xiaoping à liderança de fato do Partido Comunista já deixava entrever que isso, mais dia menos dia, viria a ocorrer.

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 11 de dezembro de 1984)


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