Friday, June 06, 2014

Quando se duvida do homem


Pedro J. Bondaczuk


As crianças deste turbulento fim de século, além de sofrerem os problemas decorrentes do abandono a que são relegadas por seus pais (que muitas vezes não têm o preparo suficiente sequer para cuidar de si próprios), estão sendo vítimas de uma prática muito mais cruel, absurda e totalmente despida de qualquer foro de humanidade. Vêm sendo responsabilizadas criminalmente em tribunais de vários países (o que se constitui na mais insana aberração jurídica), encarceradas, torturadas e mortas.

Essas denúncias não são gratuitas e foram feitas no boletim deste mês da Anistia Internacional, que relaciona 18 Estados onde esta prática cruel vem se tornando costumeira. Muitos deles são, até mesmo, tidos e havidos como “democracias”.

Sabendo dessas coisas, até dá para entender o desencanto do poeta argentino Jorge Luís Borges, sempre que se referia a sistemas democráticos, o que gerou, inclusive, alguns males entendidos a respeito de suas confusas posições políticas. Muitos chegaram a achar que ele fosse favorável a ditaduras.

O magistral escritor, numa entrevista concedida à revista “IstoÉ”, em 6 de outubro de 1982, disse: “A democracia, como se sabe, é uma superstição baseada na estatística”. A esse propósito o mexicano Octávio Paz, um dos intelectuais mais lúcidos da América Latina, tem uma posição um pouco mais ponderada.

Afirma: “A democracia, por si só, não constitui uma garantia da ambicionada justiça social. Mas garante também a liberdade de pensar...” Só que diante de aberrações, como as denunciadas pela Anistia Internacional, somos forçados a achar que nem sempre há essa garantia.

De duas, uma. Ou o sistema democrático – que pune crianças com prisões, que as tortura para arrancar confissões dos pais, mata esses menores por causa de seus eventuais delitos, entendendo a pena como “vingança da sociedade contra o infrator” e não como uma reeducação (conforme reza a moderna doutrina jurídica) –, é meramente nominal, ou Borges tinha razão.

Não há como justificar uma arbitrariedade dessa espécie por parte de uma entidade abstrata, no caso o Estado, integrada por seres ditos “humanos”, que deveriam, na pior das hipóteses, Ter ao menos dentro de si o sentimento da piedade.

Como pessoas que agem assim, em nome de uma sociedade (que certamente não avaliza essas selvajarias) podem, ao regressar do trabalho, beijar seus filhos, quando sabem que trucidaram os dos outros? Como indivíduos dessa espécie ousam se prostrar perante seu Deus, tenham a religião que tiverem, com um crime tão hediondo na consciência? A que estado de coisas a humanidade chegou neste século, cantado e decantado como sendo o das luzes e da plena civilização!!!

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 6 de janeiro de 1988).


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