Tuesday, June 17, 2014

Consenso que desperta esperanças

Pedro J. Bondaczuk


Os libaneses, de todos os credos confessionais e ideologias políticas, conseguiram ontem, afinal, chegar a um consenso, após onze anos e meio de uma guerra civil sem fim. E não foi sequer tão difícil obter tal concordância. Infelizmente, ela ainda não foi no sentido de pôr termo a esse despropositado conflito entre irmãos, embora possa vir a se constituir no primeiro passo para isso.

Muçulmanos (xiitas, sunitas e drusos) e cristãos (maronitas e coptas) uniram suas forças e suas vontades e paralisaram o Líbano, numa greve geral contra a elevação do custo de vida e o terrível monstro inflacionário, que põe em risco não somente a sobrevivência econômica libanesa, mas a própria subsistência física de cada cidadão.

O que o povo desse país está, de verdade, é cansado de tanta violência, desnecessária e insensata, que não somente arrebentou com os cofres públicos, mas desorganizou toda a sua sociedade, a ponto de hoje ninguém mais saber "quem é quem".

Quadrilhas de malfeitores têm sido formadas e se misturam aos grupos políticos, praticando toda a sorte de desordens e tropelias. O aprazível Vale do Bekkaa, outrora um ponto turístico, com suas históricas ruinas de aquedutos construídos pelos romanos, hoje é um vasto campo de produção de papoula, inscrevendo o Líbano no mapa dos países que elaboram e vendem ópio.

Antes da guerra civil, organizações criminosas faziam de Beirute um entreposto, um elo de conexão que levava essa droga da Turquia e de partes do mundo ainda mais remotas, como a Tailândia e a Birmânia, para a sua distribuição na Europa e nos Estados Unidos. Hoje os traficantes transformaram todo o Líbano, de mera base de troca, em importante produtor.

Em diversos outros aspectos da vida nacional (para não dizer em todos), a guerra civil deixou suas seqüelas de medo, de desencanto e de desorganização da vida comunitária. Não há, praticamente, nenhuma família que não tenha pelo menos algum morto a lamentar. E tudo isso por qual razão?

Nenhuma milícia libanesa pretende, por exemplo, partilhar o país através do movimento secessionista, como acontece em Sri Lanka e na Índia. O enclave cristão do major Hadad, criado na década passada, não passou de mera aventua inconseqüente, há muito esquecida. Ninguém deseja, também, alterar o regime aproximando, ou afastando, o Líbano de Moscou. Portanto, a motivação ideológica deve, também, ser descartada.

Não há quem entenda ou explique, portanto, a razão dessa carnificina, que em alguns instantes adquire feições de completa demência, com atentados terroristas cometidos contra supermercados repletos de donas de casa ou contra escolas cheias de crianças.

Os libaneses levaram longe demais uma vingança a um desastrado motorista palestino, que com sua imprudência, conseguiu jogar um país inteiro no abismo. Algumas pessoas poderiam argumentar que os xiitas, por exemplo, lutam por maior fatia de poder, por ostentarem a condição de maior grupo religioso do Líbano. Mas isso veio depois.

Essa comunidade, ao se sentir, em determinado instante, alvo de ataques de todas as partes, se rebelou contra isso, principalmente ao perceber que sua capacidade de decisão política no país era mínima. Ela foi atacada até mesmo pelos israelenses, que ajudaram a invadir o território libanês para expulsar seus inimigos palestinos.

Todos se recordam do campo de concentração de Answar, da confusão que deu a remoção para Israel de 781 presos, do seqüestro realizado em junho do ano passado do Boeing da empresa norte-americana TWA e da posterior libertação dos xiitas detidos.

A unanimidade da greve de ontem trouxe uma certa esperança ao Líbano. Não aquela despertada com o acordo firmado em janeiro passado, em Damasco, para pôr fim à guerra civil, desgraçadamente frustrada. Aquele tratado já havia nascido visivelmente viciado, por ter deixado à margem o presidente Amin Gemayel. Mas a confiança de que o cansaço de tanta insânia e a certeza de que esta está levando a economia libanesa à falência, virá a levar, finalmente, toda a população a um outro tipo de entendimento coletivo: o de que somente havendo paz e liberdade para trabalhar, existirão condições para que essa outrora exemplar nação sobreviva.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 4 de julho de 1986)


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