A regra é clara?
Pedro
J. Bondaczuk
“A regra é clara”. Pelo
menos, é o que assegura o ex-árbitro de futebol e comentarista de arbitragem da
Rede Globo, Arnaldo César Coelho, que utiliza essa enfática afirmação até como
uma espécie de marca registrada, como um bordão. Mas será que em uma disputa em campo há,
mesmo, essa alegada clareza, e, sobretudo, tanta objetividade? Não existem
situações que dependam, exclusivamente, de interpretação de quem arbitra? As 17
regras do futebol são, mesmo, tão perfeitas e incontestáveis a ponto de sua
aplicação não gerar nenhuma dúvida e às vezes até suspeitas? Claro que não!
Aliás, dependem demais de quem as interpreta. E raramente suas interpretações
são consensuais, ou seja, aceitas por todos.
É verdade que não são apenas
as regras do futebol que têm essas características. As dúvidas e contestações
ocorrem em todas as modalidades esportivas. A questão nem é de clareza, mas de
como o árbitro “enxerga”, e interpreta, certos lances polêmicos,
considerando-os faltosos ou não. Quem determina o que eles têm que considerar,
quando apitam um jogo, ou seja, o órgão normativo do “esporte das multidões”, é
o International Board, um dos departamentos da Federation International of
Futebol Association, Fifa. Há quem considere que os homens que podem modificar
algumas regras, consideradas ultrapassadas ou inadequadas, são conservadores em
demasia. Discordo. A alegada rigidez nem é tão rígida assim.
A exigência mais comum
no mundo do futebol é que sejam introduzidos, na modalidade, recursos
eletrônicos para dirimir dúvidas em lances duvidosos, como ocorre no futebol
americano, no basquete ou no tênis. Bem, um deles, já está em vigor nesta Copa
do Mundo. É o sistema que determina, em casos em que a vista humana não pode
determinar com precisão, se a bola ultrapassou ou não a linha de gol.
Reivindica-se que o mesmo procedimento seja adotado para tantas outras
situações duvidosas, notadamente para impedimentos e penalidades máximas. Creio
que seja, apenas, questão de tempo para esses recursos serem implementados, a
despeito do seu custo. Mas mesmo com o auxílio da tecnologia, sempre haverá a
necessidade de interpretação. E creio que raramente haverá consenso.
As mudanças
introduzidas nas regras são muito maiores do que os leigos – e até mesmo muitos
“experts” na matéria – possam supor. As arbitragens, por exemplo, da Copa de
1930, ou mesmo das de 1950, 1954 ou 1958 eram muito diferentes das atuais. Isso
não quer dizer que os árbitros de então eram mais ou menos competentes ou, até
mesmo, mais ou menos honestos. O que era certo, então, é faltoso hoje. Exemplo?
A reposição de bola pelos goleiros. Até não faz muito, estes poderiam demorar o
quanto quisessem com ela nas mãos, desde que a quicassem o tempo todo. Hoje,
têm que a repor em seis segundos. É certo que a maioria dos árbitros faz vistas
grossas a esse detalhe. Mas ele está na regra. O recuo de bola para os goleiros
também mudou. Não faz muito, poderia ser feito com os pés. E os goleiros podiam
segurá-la com as mãos sem nenhum problema. Hoje, o recuo só pode ser feito com
o peito ou de cabeça.
Outra mudança na regra
refere-se a substituições de jogadores. Até a Copa do Mundo de 1966, os onze
atletas de cada lado que iniciavam a partida tinham que terminá-la. Quando
ocorria alguma contusão grave, o time (ou seleção) que tivesse essa
infelicidade só tinha duas opções: ou continuar o jogo com um atleta a menos,
ou manter o contundido em campo apenas fazendo “número”. Hoje, a regra permite
até três substituições e não apenas por questões físicas, mas até por
deficiência técnica ou objetivando mudança tática. Não faz muito, não havia
banco de reservas. Os técnicos escalavam seus times, mas não entravam em campo.
Hoje, além de estarem o jogo inteiro à margem do gramado, podem dar instruções
o tempo todo, desde que não saiam da sua área técnica (outra inovação). E têm à
sua disposição até doze jogadores, facilitando demais as substituições.
Outra mudança
considerável foi a criação dos cartões: amarelo, para advertir atletas
violentos ou indisciplinados, e vermelho, para expulsá-los. Até 1966, essa
“figura” não existia. Os faltosos eram advertidos verbalmente. E quantas vezes
o árbitro julgasse necessário. Não havia acúmulo de advertências, como hoje,
que determinasse expulsão automática do faltoso, em caso de ser advertido duas
vezes no mesmo jogo e sua suspensão automática na próxima partida, caso
acumulasse três. A criação dos cartões deu poder exagerado aos árbitros. Estes
podem modificar até desfechos de campeonatos amarelando atletas essenciais de
determinada equipe de sorte a que estes acumulem três advertências e não possam
atuar no jogo seguinte, não raro decisivo.
Uma pergunta se impõe
automaticamente: os árbitros atuais são piores do que os do passado, nem tão
remoto assim? Entendo que não. São, isso sim, mais vigiados. Não faz muito,
raros jogos eram televisionados. E os que eram, as câmeras de TV não captavam
determinados detalhes. Não havia como. Hoje, com os inúmeros recursos
tecnológicos disponíveis aos canais de televisão, com uma infinidade de câmeras
espalhadas ao longo do gramado, nada escapa ao olho eletrônico. Mas escapa ao
humano. Até o vôo de uma mosca pode ser captado. São para lá de comuns, por
exemplo, impedimentos de reles cinco centímetros ou menos, deixados de serem
assinalados pelos árbitros auxiliares (os bandeirinhas) causarem monumentais
escândalos entre narradores e comentaristas, que induzem torcedores movidos a
paixão (e, não raro, a substâncias nada recomendáveis) a “crucificarem” trios
de arbitragem, pondo em dúvida não só sua competência, mas até sua honestidade.
Ou estou exagerando?
Não faz muito, esses
lances duvidosos, que ocorriam em profusão, eram considerados normais, por
falta de recursos para provar que quem deveria observá-los e marcá-los errou ou
acertou em sua decisão. Todavia, hoje... Quantos gols decisivos não foram
marcados no passado, em completo impedimento e, no entanto, considerados
válidos? Certamente muitos. Muitíssimos. Alguns decidiram, até, campeonatos.
Vários outros foram anulados, quando deveriam ser validados.
Arbitrar, hoje em dia,
portanto, é cada vez mais difícil, mais desafiador, tarefa para super-homens.
Isso sem falar no ritmo de jogo. Exige-se, dos árbitros, atualmente, preparo
físico excepcional, mais apurado do que o de qualquer outro atleta. O futebol,
hoje, é muito mais dinâmico, mais veloz, menos cadenciado, mais físico do que
técnico. E quem apita, tem que acompanhar cada lance de perto. Isso sem falar
do excessivo número de simulações de faltas por parte dos jogadores que lhes
compete interpretar, e sempre com correção e isenção. “A regra é clara?”. Até
pode ser. Obscura, todavia, e raramente consensual, é sua interpretação.
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