Monday, June 16, 2014

Jogar futebol e escrever a respeito

Pedro J. Bondaczuk

O que é mais difícil: jogar futebol ou escrever sobre o chamado “esporte das multidões”? Esta pergunta me foi feita ainda há pouco, hoje pela manhã, por um leitor, que não me autorizou que o identificasse. Minha reação inicial foi ignorar a questão. Por que? Porque a princípio me pareceu absurda e incomparável. Ora, ora, ora... São coisas absolutamente distintas, muito diferentes. As atividades não são sequer comparáveis. Uma, o futebol, é um esporte (que também é jogo) e envolve, portanto, habilidades físicas. Já a Literatura é obra do intelecto e compõe um dos elementos mais representativos da arte e, portanto, da cultura.

Apesar dos pesares, a pergunta do leitor não me saía da mente. Ademais, não costumo ficar em cima do muro em nenhum assunto. Opino sobre tudo o que consigo formar alguma opinião minimamente coerente, embora admita que não raro cometo monumentais equívocos. Normal, não é mesmo? Por mais culto e bem informado que um sujeito seja, ninguém sabe tudo de tudo. Quando erro, todavia, e quando me provam que errei de fato, não tenho nenhum problema em me retratar. Nesses casos até agradeço a correção, pois acabo aprendendo algo que não conhecia (não, pelo menos, a fundo). Tentarei, pois, responder, com um mínimo de lógica, a pergunta do meu ilustre questionador, embora seu questionamento me pareça uma espécie de “pegadinha”, uma armadilha para testar minha retórica (e paciência, claro). Convido-o, caríssimo leitor, a acompanhar meu raciocínio.

Antes de tudo, para dar uma resposta minimamente coerente, sobre o que é mais difícil, jogar futebol ou escrever a propósito, é preciso delimitar a extensão do assunto. Por exemplo, depende a que prática futebolística e a que tipo de redação estamos nos referindo. Explico melhor. O leitor quer saber se é mais difícil jogar futebol “profissionalmente” ou escrever sobre ele também na condição de profissional? Se for em termos amadores, ou seja, no de disputar alguma informal pelada ou redigir texto sem preocupação sequer com correção gramatical, nos dois casos, portanto, sem nenhuma preocupação com qualidade, considero que as dificuldades e facilidades de ambos se equivalem.

Haverá aqui, na minha opinião, “empate técnico”. Ademais, não é incomum alguém fazer as duas coisas relativamente bem. No caso de redator, é preciso ponderar, ainda, se quem escreve sobre futebol é jornalista ou escritor, porquanto tanto o enfoque, quanto a forma de abordagem serão.diferentes. Ambas profissões, embora tenham algumas semelhanças, não são iguais. No primeiro caso, há que se questionar, também, se o tal profissional de imprensa é especialista na matéria, devidamente treinado para tal, ou se não passa de mero “diletante”. No segundo caso, é óbvio que as dificuldades tenderão a ser bem maiores.

Suponho que meu questionador esteja se referindo aos “tops dos tops” de ambas atividades. Ou seja, a jogadores de futebol de inquestionável nível de excelência, que integrem alguma seleção nacional na disputa de Copa do Mundo, assim como escritores consagrados, candidatos potenciais ao Prêmio Nobel de Literatura. Conheço, apenas, um caso de alguém que tenha exercido, e bem, ambas funções. Trata-se de Albert Camus. Não posso jurar que não existam e nem que existam outros exemplos. Não me recordo, todavia, de mais nenhum. Em termos de pressão “externa”, não há termos de comparação. Nenhum escritor é pressionado por estádios lotados, com 50 mil, 60 mil ou muito mais torcedores fanáticos, a gritarem, a cobrarem, a exigirem apaixonadamente, e o tempo todo, eficiência. Ademais, essas turbas enlouquecidas tendem a ser implacáveis: não perdoam o mínimo erro, embora errar seja humano.

E o escritor, não é pressionado? Externamente, no momento em que escreve, não é. Desenvolve sua atividade solitariamente, no mais absoluto e rigoroso silêncio. Mas... internamente... É um inferno! Passam por sua cabeça mil dúvidas e temores. Bate uma insegurança absurda e uma autocobrança infinita, que multidões de torcedores fanáticos não conseguiriam igualar. Seria só mero acaso haver tão poucos textos literários (e não me refiro aos “jornalísticos, que existem em profusão, inclusive em livros), em se levando em conta a projeção desse esporte e sua influência no comportamento das pessoas em nosso tempo? Creio que não!

Em termos de “resultados” materiais das duas atividades, então, as diferenças são abissais. Jogadores de futebol “tops de linha”, como Lionel Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar Junior, tendem a se tornar milionários. Já escritores... São raros, raríssimos os que conseguem, apenas com o produto de seus livros, pelo menos se manter decentemente. Imaginem enriquecer! Existir, existem escritores ricos, quem sabe milionários, mas dá para contar nos dedos. Os craques dos gramados são regidos por apenas 17 regras, que devem conhecer bem e cumprir ao máximo. Já os ases das letras... Têm que conhecer o mundo, o universo, o infinito.

Os poetas tendem a ser mais ousados, na exploração do futebol como tema de sua arte (mesmo assim, são raros). Conheço, por exemplo, um poema até célebre, de João Cabral de Melo Neto, louvando o talento de Ademir da Guia. Embora não me recorde qual, também já li algo a propósito composto por Carlos Drummond de Andrade. Estou seguro de haver lido mais alguns, mesmo que não me recorde o que e de quem. Revendo minha própria pífia, posto que copiosa, obra poética, constatei que escrevi um único e reles poema, tendo o futebol por assunto, que foi esta homenagem que fiz a Garrincha, um ano após ele ter sido o principal responsável pela conquista do bicampeonato mundial, por parte da Seleção Brasileira, nos gramados do Chile:       .          

Guerreiro alado

Garrincha, pequeno pássaro encantado,
alado guerreiro, ingênuo e inocente,
que faz desfilar, no presente, galhardia,
e humor e graça, as sementes do amanhã,
e que alimenta nossa fragílima fantasia
no palco grandioso do Maracanã.

 Mameluco cavaleiro do sonho,
de auriverde manto sagrado,
corcel veloz, galopa e voa
a felicidade perfeita dos simples
nos gramados da América e Europa.

Pés alados. Pés de anjo. Pés calçados
de couro e poesia, de poder e magia,
na luta heróica, com espírito lúdico,
faz acenos familiares à glória
e, em danças, coreografias, corrupios,
bêbedo de luz, sorve o vinho da vitória.

Líder nato, sem bazófia ou arrogância,
dançando, com dez exímios bailarinos,
tece, com os pés, o painel encantado da vida
no teatro, dramática arena dos bravos,
do Estádio Nacional de Santiago.

A fama é tênue e pesa toneladas.
Heróis despencam no esquecimento
vítimas da ingratidão covarde e infeliz.
Mas Garrincha voa, flutua, ganha alento
e, com arte, com magia e encantamento
desperta, orgulha e enaltece um país.

Este poema foi composto em São Caetano do Sul, em 22 de abril de 1963. Mas... qual, afinal de contas, é a minha conclusão sobre a “armadilha” do meu exigente questionador? Bem, deixo-a a seu cuidado, amável e atento leitor, com base nos provavelmente inconsistentes argumentos que tentei apresentar. E aproveito para repassar-lhe a mesma pergunta que me deixou tão confuso e intrigado: “para você, o que é mais difícil: jogar futebol, no mais alto nível, ou escrever sobre ele, com idêntica excelência”?


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