Pedro J. Bondaczuk
Os presentes mais preciosos não se medem por seu valor econômico, mas por fatores subjetivos, aliás por vários deles, principalmente pela intenção de quem os dá. A surpresa também conta nesses casos e multiplica sua importância. Ou seja, emocionam-nos ainda mais quando os recebemos sem esperar e sem que seja em datas especiais do calendário, como nossos aniversários, Natal, Páscoa, Dia dos Pais etc. Outro aspecto a considerar é que o que ganharmos se trate de algo do nosso desejo e que nos seja, simultaneamente, útil e agradável, mas não somente por algum tempo, porém por “todo o tempo”.
Pois foi este o presente que ganhei em dias recentes, cujo agradecimento devo fazer de público, quer pela grandeza do ato de generosidade de quem mo deu, quer por sua preciosidade. Refiro-me ao livro de poesias “Aprendizagem pelo avesso”, da poetisa campineira Quinita Ribeiro Sampaio (Pontes Editores, Campinas, 2012), que mesmo o ganhando há pouco tempo, questão de dias, já o li, reli e até decorei alguns de seus poemas. Pudera! Sua leitura propiciou-me momentos sublimes de introspecção, raciocínio e, sobretudo, de emoção.
O poeta John Keats escreveu, certa feita, que “um fragmento de beleza é uma alegria para sempre”. No caso, fui presenteado não com mera fração do que é belo, o que já seria grande bênção, mas com sua integralidade. Posso, pois, alegrar-me de forma exponencialmente mais intensa e por anos e anos sem fim. Gosto de ganhar livros. Essa afirmação pode parecer acaciana a quem seja habituado à leitura e tenha nela um dos maiores (quando não o maior) prazer, como é meu caso. Mas nem todos gostam de receber esse tipo de presente. Preferem outros, que consideram mais valiosos (em termos econômicos) e úteis (por critério tacanho de utilidade, óbvio). No meu caso não é assim. Gosto e gosto mesmo de ganhar livros.
Quando ganhamos alguma coisa que nos traga satisfação, se formos inteligentes, ficaremos satisfeitos não pela economia feita, por não precisarmos comprar o objeto ganho, mas por se tratar de espontânea manifestação de apreço de quem nos deu. Isso, pelo menos para mim, é o que conta. E este foi o caso do presente de Quinita.
Uma das maiores invenções do homem, que nós, pessoas modernas, não valorizamos devidamente, dada a facilidade de a obter, é o livro. Ele permite o acúmulo de sabedoria, de experiências e de emoções de indivíduos especiais e possibilita o acesso a elas de gerações e mais gerações, séculos (às vezes milênios) afora, após a morte destes. Jorge Luís Borges observou, com argúcia, a esse respeito: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; também temos o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.
Portanto, não há presente mais valioso (pelo menos para mim) do que este. Não é daquelas coisas “úteis” (é verdade), que ganhamos, mas cuja utilidade logo se esgota, ou por sair de moda, ou por se tornar ultrapassada, ou por outro motivo qualquer. A do livro não se esgota jamais. Ainda mais quando se trata de poesia...
"A função do poeta é dar às palavras o seu valor harmônico e criar de novo, com o auxílio delas, associando-as, substituindo-as, surpreendendo-as em posições inéditas, o ar de mistério de que originariamente se cercavam". Estas observações foram feitas, na primeira metade do século XX, por André Maurois, no livro "Vozes da França", a propósito de Paul Valéry. São, no entanto, mais do que válidas e atuais. Trata-se de uma das raras (e mais lúcidas) definições sobre o papel desse tipo de escritor, um tanto confuso na cabeça dos leigos. Mas a definição melhor é a da norte-americana Edith Sitwell, quando constata: "Como Moisés, o poeta vê Deus na sarça ardente, quando o olho físico, míope ou mal aberto, só vê um jardineiro queimando folhas". Trata-se, pois, de um mago que, com o frágil instrumento da palavra, cria mundos de beleza e de emoção.
A poetisa Joaquina Elisa Ribeiro Sampaio de Melo Serrano, conhecida, carinhosamente, por Quinita, dedicou praticamente a vida toda à Literatura (como, aliás, toda sua família o fez). Formou-se em Letras Clássicas em 1946, na então Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Católica de Campinas. Dedicou-se ao magistério, onde fez carreira. Foi, por exemplo, professora de Português no centenário e tradicional Colégio Culto à Ciência de Campinas. Lecionou por muitos anos Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da PUC-Campinas, contribuindo, certamente, para a formação de futuros (e bons) escritores. Mas, para nossa felicidade, nunca deixou de escrever. E que escrita a sua!
Partilho com vocês esta beleza de poema do livro “Aprendizagem pelo avesso”, mas recomendo que o amável leitor adquira essa obra, que contém pérolas poéticas dignas de perpetuidade.
Auto-retrato
“Nem sempre atendo ao chamado da poesia.
Às vezes não tenho tempo
então finjo não ouvi-la
desvio o olhar
faço-me de distraída
e não lhe abro a porta.
Tenho que cumprir tarefas inadiáveis.
Tenho que amassar o pão
estender a roupa ao sol.
Não estou disponível.
Ela fica por perto
ronda à minha volta
murmura aos meus ouvidos
interrompe a minha lida.
Mas eu não tenho tempo.
Ela me fala
e eu desvio o olhar
como quem muda de assunto.
Nem sempre eu abro a porta à poesia;
Não estou disponível.
Tenho que tratar das tarefas inadiáveis.
Faço-me de distraída
como se não a pressentisse.
No momento
não tenho lugar para acolhê-la.
Não a renego (Deus me livre)
apenas adio o encontro.
Digo à poesia que espere
que passe daqui a pouco
não pode ser agora.
Não estou liberta
não tenho tempo.
Mas não me sinto natural
nem à vontade
em não ceder-lhe um pouso
um aposento
em minha morada.
Quando não abro a porta à poesia
é como se me desalojasse de mim mesma
trancasse a casa
e me esquecesse de mim
fora de portas
ao relento”.
O escritor norte-americano John Updike, no romance “O Encontro”, escreveu, através de um dos seus personagens: “As palavras, quaisquer palavras, são o modo de darmos a alguém uma parcela de nós próprios”. E foi o que Quinita fez comigo, ao presentear-me com seu precioso “Aprendizagem pelo avesso”. Doou-me, generosamente, parcela de si mesma. E, para tornar a dádiva ainda mais valiosa e pessoal, complementou o presente com uma delicada e sensível dedicatória. Muito obrigado, poetisa, por surpreender-me de forma tão carinhosa e agradável. Voltarei a tratar, ainda, e muitas vezes, do seu memorável livro, esteja certa.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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