Monday, October 15, 2012

Valiosíssimo presente

Pedro J. Bondaczuk

Os presentes mais preciosos não se medem por seu valor econômico, mas por fatores subjetivos, aliás por vários deles, principalmente pela intenção de quem os dá. A surpresa também conta nesses casos e multiplica sua importância. Ou seja, emocionam-nos ainda mais quando os recebemos sem esperar e sem que seja em datas especiais do calendário, como nossos aniversários, Natal, Páscoa, Dia dos Pais etc. Outro aspecto a considerar é que o que ganharmos se trate de algo do nosso desejo e que nos seja, simultaneamente, útil e agradável, mas não somente por algum tempo, porém por “todo o tempo”.

Pois foi este o presente que ganhei em dias recentes, cujo agradecimento devo fazer de público, quer pela grandeza do ato de generosidade de quem mo deu, quer por sua preciosidade. Refiro-me ao livro de poesias “Aprendizagem pelo avesso”, da poetisa campineira Quinita Ribeiro Sampaio (Pontes Editores, Campinas, 2012), que mesmo o ganhando há pouco tempo, questão de dias, já o li, reli e até decorei alguns de seus poemas. Pudera! Sua leitura propiciou-me momentos sublimes de introspecção, raciocínio e, sobretudo, de emoção.

O poeta John Keats escreveu, certa feita, que “um fragmento de beleza é uma alegria para sempre”. No caso, fui presenteado não com mera fração do que é belo, o que já seria grande bênção, mas com sua integralidade. Posso, pois, alegrar-me de forma exponencialmente mais intensa e por anos e anos sem fim. Gosto de ganhar livros. Essa afirmação pode parecer acaciana a quem seja habituado à leitura e tenha nela um dos maiores (quando não o maior) prazer, como é meu caso. Mas nem todos gostam de receber esse tipo de presente. Preferem outros, que consideram mais valiosos (em termos econômicos) e úteis (por critério tacanho de utilidade, óbvio). No meu caso não é assim. Gosto e gosto mesmo de ganhar livros.

Quando ganhamos alguma coisa que nos traga satisfação, se formos inteligentes, ficaremos satisfeitos não pela economia feita, por não precisarmos comprar o objeto ganho, mas por se tratar de espontânea manifestação de apreço de quem nos deu. Isso, pelo menos para mim, é o que conta. E este foi o caso do presente de Quinita.

Uma das maiores invenções do homem, que nós, pessoas modernas, não valorizamos devidamente, dada a facilidade de a obter, é o livro. Ele permite o acúmulo de sabedoria, de experiências e de emoções de indivíduos especiais e possibilita o acesso a elas de gerações e mais gerações, séculos (às vezes milênios) afora, após a morte destes. Jorge Luís Borges observou, com argúcia, a esse respeito: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; também temos o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.

Portanto, não há presente mais valioso (pelo menos para mim) do que este. Não é daquelas coisas “úteis” (é verdade), que ganhamos, mas cuja utilidade logo se esgota, ou por sair de moda, ou por se tornar ultrapassada, ou por outro motivo qualquer. A do livro não se esgota jamais. Ainda mais quando se trata de poesia...

"A função do poeta é dar às palavras o seu valor harmônico e criar de novo, com o auxílio delas, associando-as, substituindo-as, surpreendendo-as em posições inéditas, o ar de mistério de que originariamente se cercavam". Estas observações foram feitas, na primeira metade do século XX, por André Maurois, no livro "Vozes da França", a propósito de Paul Valéry. São, no entanto, mais do que válidas e atuais. Trata-se de uma das raras (e mais lúcidas) definições sobre o papel desse tipo de escritor, um tanto confuso na cabeça dos leigos. Mas a definição melhor é a da norte-americana Edith Sitwell, quando constata: "Como Moisés, o poeta vê Deus na sarça ardente, quando o olho físico, míope ou mal aberto, só vê um jardineiro queimando folhas". Trata-se, pois, de um mago que, com o frágil instrumento da palavra, cria mundos de beleza e de emoção.

A poetisa Joaquina Elisa Ribeiro Sampaio de Melo Serrano, conhecida, carinhosamente, por Quinita, dedicou praticamente a vida toda à Literatura (como, aliás, toda sua família o fez). Formou-se em Letras Clássicas em 1946, na então Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Católica de Campinas. Dedicou-se ao magistério, onde fez carreira. Foi, por exemplo, professora de Português no centenário e tradicional Colégio Culto à Ciência de Campinas. Lecionou por muitos anos Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da PUC-Campinas, contribuindo, certamente, para a formação de futuros (e bons) escritores. Mas, para nossa felicidade, nunca deixou de escrever. E que escrita a sua!

Partilho com vocês esta beleza de poema do livro “Aprendizagem pelo avesso”, mas recomendo que o amável leitor adquira essa obra, que contém pérolas poéticas dignas de perpetuidade.

Auto-retrato

“Nem sempre atendo ao chamado da poesia.
Às vezes não tenho tempo
então finjo não ouvi-la
desvio o olhar
faço-me de distraída
e não lhe abro a porta.

Tenho que cumprir tarefas inadiáveis.
Tenho que amassar o pão
estender a roupa ao sol.
Não estou disponível.

Ela fica por perto
ronda à minha volta
murmura aos meus ouvidos
interrompe a minha lida.
Mas eu não tenho tempo.
Ela me fala
e eu desvio o olhar
como quem muda de assunto.

Nem sempre eu abro a porta à poesia;
Não estou disponível.
Tenho que tratar das tarefas inadiáveis.
Faço-me de distraída
como se não a pressentisse.
No momento
não tenho lugar para acolhê-la.

Não a renego (Deus me livre)
apenas adio o encontro.
Digo à poesia que espere
que passe daqui a pouco
não pode ser agora.
Não estou liberta
não tenho tempo.

Mas não me sinto natural
nem à vontade
em não ceder-lhe um pouso
um aposento
em minha morada.

Quando não abro a porta à poesia
é como se me desalojasse de mim mesma
trancasse a casa
e me esquecesse de mim
fora de portas
ao relento”.

O escritor norte-americano John Updike, no romance “O Encontro”, escreveu, através de um dos seus personagens: “As palavras, quaisquer palavras, são o modo de darmos a alguém uma parcela de nós próprios”. E foi o que Quinita fez comigo, ao presentear-me com seu precioso “Aprendizagem pelo avesso”. Doou-me, generosamente, parcela de si mesma. E, para tornar a dádiva ainda mais valiosa e pessoal, complementou o presente com uma delicada e sensível dedicatória. Muito obrigado, poetisa, por surpreender-me de forma tão carinhosa e agradável. Voltarei a tratar, ainda, e muitas vezes, do seu memorável livro, esteja certa.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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