Pedro J. Bondaczuk
“A poesia te escolhe, não a escolhes./Te acolhe, como um tíbio ventre de mulher/no centro do amor”. Quem é o autor destes belos (e verdadeiros) versos? Adianto que não é nenhum poeta brasileiro. Não identificaram? Pois lhes revelo. Este trecho de poema é do panamenho Manuel Orestes Nieto. Colhi-o no excelente portal do professor Antonio Miranda (WWW.antoniomiranda.com.br), que o traduziu para o português.
Frequento, há já uns cinco anos, com grande assiduidade, esse espaço e através dele familiarizei-me com excelentes poetas latino-americanos (e também africanos e principalmente brasileiros não tão conhecidos do público, mas que são muito bons). Sem favor algum, considero esse site o melhor, quando se trata de poesia, que já encontrei na internet, sem desmerecer nenhum outro. É inestimável, portanto, o serviço prestado pelo professor Antonio Miranda às letras em geral e, especificamente, à poesia. Só quem tem muita paixão pela Literatura, e é abnegado, como ele, presta serviço de tanta relevância e bom gosto à arte e à cultura. Há tempos devo esse registro (e esse reconhecimento) a esse mestre de Brasília.
Poucos poetas latino-americanos são conhecidos entre nós. A rigor, à exceção dos dois chilenos ganhadores do Nobel de Literatura, Gabriela Mistral e Pablo Neruda, do mexicano também premiado pela Academia Sueca Octávio Paz, do argentino Jorge Luís Borges e talvez do nicaragüense Ruben Dario (pseudônimo de Félix Ruben Garcia Sarmiento), não me lembro de nenhum outro que tenha sido mencionado, mesmo nos círculos literários mais sofisticados e bem informados. Todavia, a América Latina produziu (e produz) extraordinários cultores (e produtores) da arte poética: argentinos, uruguaios, peruanos, bolivianos, colombianos, venezuelanos e... panamenhos, entre outros povos. Todos os países da América Latina contam com inspiradíssimos poetas, e não apenas com um, mas com dezenas, talvez centenas, quiçá milhares deles.
E por que, então, escolhi, especificamente, esse escritor, Manuel Orestes Nieto, e ainda mais, este poema em particular, para trazer o assunto à baila? Por várias razões. A primeira é que o texto é, de fato, de alta qualidade. A segunda foi por causa do tema que aborda, que me atrai por motivos óbvios (já que me considero um dos tantos “escolhidos” pela poesia para perpetrar meus versos). A terceira, por que a literatura panamenha é pouquíssimo divulgada, o que deixa a falsa impressão de que o Panamá sequer a tem. No entanto tem, e é ótima!!!
Ademais, Manuel Orestes Nieto não é um poeta qualquer. Ganhador de diversos prêmios, goza de sólida e merecida reputação na América Latina. Permitam-me apresentá-lo a você, curioso leitor de bom gosto. Nascido em 7 de junho de 1951, na capital panamenha, é, além de escritor, diplomata, tendo sido embaixador do seu país na Argentina e em Cuba. É diretor da Biblioteca Nacional “Ernesto J. Castillero R.” e subdiretor geral do Instituto Nacional de Cultura. Como se vê, é homem culto, eclético e bem informado. E acrescentaria: de bom gosto.
Como poeta, foi premiado em inúmeras ocasiões, sendo seus prêmios mais relevantes o da “Casa das Américas”, em 1975, com o livro “Dar a cara” e o “Nacional de Literatura Ricardo Miró”, a maior premiação literária do Panamá, que ganhou em quatro ocasiões. Seu currículo é tão extenso, que preencheria, com facilidade, um volume de médio porte. E, convenhamos, ninguém é tão premiado, requisitado e reverenciado por nada, pela simples “beleza dos olhos”, ou por outro fator subjetivo qualquer. Para conquistar tudo isso, o sujeito tem que ser bom de fato. E Manuel Orestes Nieto o é!
Quanto ao poema com que abri estas reflexões, pergunto: você concorda que é a poesia que “nos escolhe” e não nós que a escolhemos? Claro que se trata de metáfora (e das mais felizes), mas a interpreto literalmente. A beleza é um bem universal e está à disposição de todos. Todavia, só uns poucos conseguem traduzi-la em textos, em versos, em poemas, com emoção e sensibilidade. E, principalmente, com, empatia, transmitindo esses sentimentos que experimenta ao escrever de formas a fazer com que quem o lê, sinta a mesma coisa que sentiu. Por que alguns conseguem isso e outros tantos, embora tentem e apliquem as mesmas técnicas de quem conseguiu, não obtêm êxito? Para mim, quem consegue transmitir essa emoção foi “escolhido” pela poesia. Já quem não consegue...
Bem, por mais meticulosas e detalhadas que possam ser minhas ´”interpretações” do poema de Manoel Orestes Nieto, nenhuma será tão completa, e intensa, quanto a emoção que seus versos venham a despertar em você, caríssimo e precioso leitor. Afinal, poesia não é para ser racionalizada, ou mesmo explicada, mas para ser “sentida”. Deliciem-se, portanto, com ela, como eu me deliciei (e, reitero, a tradução foi feita pelo professor Antonio Miranda):
A poesía te escolhe, não a escolhes.
1.
A poesia te escolhe, não a escolhes.
Te acolhe, como um tíbio ventre de mulher
no centro do amor.
Tudo doa no ato de saber
que tudo deve ser tomado.
Não trama, tece para os outros. Às vezes com dor.
Sua virtude principal consiste
em maltratar-te por banal.
Acossar o turvamento de teus días, é seu ofício.
2.
Exorcizar-te
para que possam viver contigo
as vidas que rondam nos diâmetros
que teu coração é capaz de traçar.
Te abandona quando tentas sortear
suas conseqüências.
Foge dos lugares onde a imaginação
e o assombro morreram
e evita passar por onde coabitam
ruindades do espírito.
Está feita de presença
porque tem o dom de desdobrar-se
sem deixar de ser inteira.
3.
Filha da palavra
vituperaram-na sem poder tocá-la.
Irmã da história
foi queimada e posta em custódia
dos carcereiros.
Com esta qualidade única
de não necessitar de repouso,
não desfalece nem conhece a fadiga.
Seus textos falsificados,
desonrados seus leais oficiantes,
distorcida até o cansaço,
prefere a rota do viajante
do que viver nos templos
que pôde edificar
pela magnitude de sua luz.
4.
Humilde como só ela,
entra sem ruído na casa da fome,
varre seus rincões,
limpa o pó mais afastado,
conserta o roído
e se encarrega do roto.
Vidente dos fatos
com que se mede o tempo,
a idade e a plenitude
da comoção dos que se reúnem.
Andaime do porvir.
Frágua, constância,
fole, criadora.
5.
Diante de ti
há uma vergonha confessa que aspira
a sua purificação.
Alguém que desenterrou sua pedra angular
para refazer sua pirâmide
antes que o matagal a oculte.
Clamaste para que se detenha
o sacrifício irracional
e a rachadura
dos bárbaros se feche.
Te interpuseste
entre a adaga e o indefeso.
Aprendeste que a compaixão
tem seus fornecedores
no olho da água do injusto.
Apesar de tuas razões,
te cabe errar como os despatriados forçados,
cercados e reduzidos à proibição.
E te levaram em um andor
longas filas de homens sérios,
estremecidos até a perturbação
pelo que pode provocar
a ignomínia.
6.
Quiseram transformá-la em mãe da lamentação
e da desesperança.
Velório de cosmético, graça de feira.
Acenderam incensos
e construíram urnas de cristal.
Difundiram, sem parar,
que nasceste para o sonho e que a vida
pouco tem a ver com teus costumes.
Tentaram de enfeitar
como jóia de cristaleira
e te presentearam todos os espelhos
para neles veres
refletidas suas consciências.
Mas soubeste dizer-lhes que não.
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