Pedro J. Bondaczuk
O poeta Fernando Pessoa é um dos escritores que mais me fascinam, por uma série de razões, notadamente pela qualidade de sua produção literária, por sua surpreendente quantidade e pela originalidade de suas idéias e de seus estilos, já que tinha mais de um, na verdade dezenas deles, um diferente do outro, compondo as dezenas de personalidades que assumiu com seus heterônimos. Trata-se de caso único na literatura mundial. O que não consegui entender, até hoje, é o fato desse gênio das letras não haver recebido (e nem mesmo sido cogitado) o Prêmio Nobel de Literatura.
Essa omissão (entre tantas e tantas outras) acentua minhas suspeitas sobre a ausência de critérios lógicos de avaliação por parte dos responsáveis pela atribuição dessa badalada premiação. Mesmo sem esse reconhecimento oficial, Fernando Pessoa é tido e havido, quase que consensualmente, como um dos maiores poetas de língua portuguesa de todos os tempos e da literatura mundial. Há quem o coloque no mesmo patamar de Luiz Vaz de Camões. Mesmo correndo o risco de ser considerado “herético”, porém, coloco-o pelo menos um degrau acima do autor de “Os Lusíadas”. Nesse aspecto, estou em boa companhia. O consagrado crítico literário Harold Bloom considera que a obra de Pessoa “é um legado em língua portuguesa ao mundo”. Concordo entusiasticamente com ele. Por isso, já escrevi tanto sobre ele (por volta de cinqüenta textos) e, certamente, escreverei muito mais.
Fernando Antonio Nogueira Pessoa faleceu em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luís dos Franceses, em Lisboa, onde havia sido internado na véspera, em decorrência de uma "cólica hepática", conforme diagnóstico dos médicos locais. Publicou, em vida, com o seu nome de batismo, apenas um livro: "Mensagem", em 1934. Sua produção, porém, foi copiosa, variada, densa e, sobretudo, estilisticamente prolífica e original, o que o torna tão interessante, principalmente para os amantes da boa poesia.
A quase totalidade do que foi publicado, enquanto vivo, o foi sob vários outros nomes, que não o seu. É verdade que, postumamente, isso acabou sendo corrigido. E outros tantos livros tendem ainda a surgir, já que somente uma parcela ínfima dos papéis que deixou foi analisada e organizada. Também, pudera! Foram deixados 25.426 documentos originais, dos quais 18.816 manuscritos, em letra quase indecifrável. Depois de morto, foram publicados os seguintes livros com seu nome de batismo: "Poesias", "Poesias Inéditas (1930-1935)", "Poesias Inéditas" (1919-1930) e "Quadras ao Gosto Popular". Muitos outros, certamente, ainda virão.
Dificilmente, quantidade e qualidade andam juntas. Poucos escritores conseguem produzir obra tão vasta, quanto a de Pessoa e que seja, simultaneamente, de reconhecido e superior valor artístico, como esse mago da palavra fez. Não li um só dos seus textos sem concluir a leitura gratificado, e enriquecido, tanto cultural quanto espiritualmente. E olhem que não foram poucos os que tive o privilégio de ler.
Como seria de se esperar, a Primavera (a despeito de se tratar de assunto tão batido e desafiador para quem pretenda ser original) foi um dos temas que Fernando Pessoa explorou. O poema que escolhi, para partilhar com vocês, foi composto sob o heterônimo de Alberto Caieiro. Consta do livro “Poemas inconjuntos”. É difícil caracterizá-los com exatidão. Não sei se são poesia em prosa ou prosa poética. O leitor que escolha a caracterização que lhes queira dar, caso leia essa obra. Ademais, o “rótulo” é o que menos importa. Importa, sim, a originalidade com que Pessoa tratou de um tema tão batido e convencional. Confiram:
Quando vier a Primavera
“Quando vier a Primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
e gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é”.
Pessoa, no poema transcrito, conclui que a Primavera, e todas as outras estações e mais, a própria realidade, independem dele (ou de nós). Mesmo que venhamos a morrer, na véspera de seu início, ela ocorrerá da mesma maneira, à nossa revelia. Deixa subentendido, pois, nas entrelinhas, que a natureza existe não em nossa função. Nós é que somos parte dela, e das mais ínfimas e desimportantes. Ela segue o seu curso indiferente de nós, quer o testemunhemos quer não. Nossa existência é fortuita, casual e até mesmo inútil para o bom andamento dos fenômenos naturais. Mas teimamos em não compreender, e em não aceitar essa cristalina e evidente verdade.
Não detectei essa visão sobre a primavera em nenhum poema, de nenhum outro poeta, das centenas que li. Fernando Pessoa conseguiu, como se vê, ser original num tema tão batido, propício a tantos e tão óbvios clichês e que eu, por mais que venha tentando, ano após ano, jamais consegui. É mais uma prova concreta da sua genialidade (como se ainda fosse necessária essa comprovação). E pensar que nem mesmo chegou a ser sequer cogitado ao Prêmio Nobel de Literatura! Que mancada!!!
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