Pedro J. Bondaczuk
A vida me foi (e segue sendo) sumamente generosa, posto que não me tenha proporcionado fortuna, fama e glória, que muitos (tolos) consideram o suprassumo do sucesso. Não obtive nenhuma das três e pouco me importa. Por que? Porque a vida deu-me algo bem mais precioso, de muito maior relevância e transcendência, que mais que compensa a ausência desse trio tão cobiçado e, no entanto, tão efêmero e enganador. Deu-me afeto. O dos meus pais, que me incutiram princípios, dos quais nunca abri e nem abrirei mão jamais. Dos demais parentes que, mesmo à distância e com escassos contatos pessoais, sei que gostam de mim e eu gosto demais deles. Da esposa, dos filhos e dos netos, com os quais sempre estarei em débito E, para completar, de uma legião de amigos, muitos dos quais já falecidos, mas que permanecem vivíssimos em minha memória.
Quem me acompanha com fidelidade internet afora (e, felizmente, são muitos, são milhares, quiçá milhões), sabe do valor que dou às amizades. E sabe, em especial, o apreço que sempre tive por um escritor, por um poeta, mas antes de tudo por um generoso e fiel amigo especial, sobre o qual, volta e meia, a qualquer pretexto, trato em meus às vezes até bizarros textos. Refiro-me a Mauro Sampaio.
Ele faleceu em 2001. Todavia, considero meu dever de amigo (pois sei que em situação inversa ele faria o mesmo por mim), manter viva sua lembrança, através da divulgação da sua extraordinária obra poética. Agindo assim, ressalto, não estou fazendo nenhum favor a quem quer que seja. Aliás, minto. Faço um favor, sim, mas ao mundo, cada vez mais carente de beleza e de poesia. Limito-me, no entanto, a cumprir, espontaneamente, um dever tácito de afeto e de admiração. Sou, pois, apenas coerente (o que, por sinal, é raro em minha conduta, caracterizada pela incoerência).
Conheci Mauro, pode-se dizer, por acaso. Fomos apresentados por um amigo comum, o jornalista e poeta (também saudoso) Maurício de Moraes, colega de redação no Correio Popular de Campinas. Ele havia ido ao jornal para divulgar um evento da Academia Campinense de Letras que então presidia. Conversa vai, conversa vem, notamos que tínhamos muito em comum. Daí para uma amizade sólida e indestrutível... foi um piscar de olhos.
A simpatia foi instantânea, fulminante e recíproca. Mauro, generoso como sempre, presenteou-me com a coleção completa de seus livros. Foi mais longe: doou-me, também, obras do seu ilustre pai, Benedito Sampaio, mestre que se tornou mito como o mais requisitado e competente professor de Português da cidade, firmando prestígio de competência e sabedoria sobretudo na então nascente Universidade Católica de Campinas. Além de lecionar, era consagrado escritor e requisitado colunista dos jornais da cidade, numa época em que eu ainda era menino. Conhecia-o, claro, de nome (qual o campineiro da minha geração que não o conhecia?), mas não tinha lido ainda nenhum de seus textos.
Mas não foi só. Mauro exorbitou na generosidade. Ofertou-me, ainda, outro livro “Renembranças”, de seu não menos ilustre irmão, também professor e requisitadíssimo escritor, Francisco Ribeiro Sampaio. A essa altura, eu já havia lido dezenas de poemas do amigo (também militante no Magistério, mas como professor na Faculdade de Odontologia da PUC-Campinas) e me encantado com eles. Percebi que Mauro me introduzia, posto que por vias indiretas (intelectuais) em sua preciosa família. E que família! Para completar, deu-me alguns poemas esparsos da irmã mais nova, Quinita Ribeiro Sampaio de Melo Serrano, tecendo-lhe elogios que, agora, pude comprovar que não eram meros frutos de afeto fraterno, mas avaliações pertinentes de alguém que entendia do assunto quando se trata de poesia. E como entendia!
Tempos depois, já com a amizade consolidada, abriu-se uma vaga na Academia Campinense de Letras e quem vocês acham que foi lançado candidato à cadeira? Isso mesmo, foi este modesto escrevinhador, embora, na oportunidade, contasse com um único e conspícuo livrinho de contos, posto que tivesse certo prestígio na imprensa campineira como comentarista político, econômico e cultural. Graças ao empenho de Mauro e de Maurício, acabei eleito, em 1992, aos 49 anos de idade, tornando-me, na ocasião, o acadêmico mais jovem dessa ilustre e tradicional instituição a que ainda pertenço, há já vinte anos, com extremo orgulho. Com “cabos eleitorais” como esses, não havia como perder. E não perdi.
Ao escrever esta série de reflexões, tratando da maneira como alguns dos meus escritores preferidos abordaram o tema primavera, claro que a família Sampaio tinha que ter, obrigatoriamente, espaço. Até porque, o critério que adotei para a seleção dos textos foi o de escolher apenas aqueles que, de alguma forma, tiveram influência em minha vida. E a de Mauro, nem é preciso reiterar, foi extraordinária em todos os sentidos (assim como ele sempre foi extraordinário e também em todos os sentidos).
O primeiro poema que escolhi para partilhar com vocês foi o do ilustre patriarca da família Sampaio –sobre o qual tive oportunidade de fazer duas extensas preleções na Academia Campinense de Letras, da qual foi um dos fundadores, uma sobre sua obra poética e outra sobre a produção em prosa que publicou – Benedito Sampaio. O poema abaixo, embora sintético, minimalista até, é de suma originalidade e consta do livro “Tangolomango”. Confiram:
Primavera
“Primavera, primavera, folhas verdes!
A Terra, que linda corbelha de flores
vogando no espaço!
--- E por que tantas víboras dentro
de um cesto de flores?”
Do próprio Mauro Sampaio (e não poderia faltar composição dele nesta série), selecionei dois poemas – compostos naquele seu delicioso estilo minimalista, que muito sugere e que tanto me agrada – alusivos à Primavera. Ambos integram o último livro que o saudoso (e generoso) amigo poeta publicou, “No silêncio do espelho” (R. Vieira Gráfica & Editora Ltda, Campinas, 2001), dedicado à irmã poetisa Quinita Sampaio de Melo Serrano, ao filho Alexandre e a Sílvia Sampaio Ciccu. O primeiro intitula-se “Caridade” e diz:
“Há de chegar o tempo de certezas,
O tempo de convicção,
Onde florescerão primaveras, com chuvas e sol e pássaros
Flores e nuvens”.
Lindo, não é verdade? Ao lê-lo, formamos, em nossa mente, quase que à revelia, um quadro belíssimo e iluminado, em que todos esses elementos que o poeta citou ganham concretude e vida. O segundo poema que partilho com vocês iguala-se ao primeiro, em beleza e transcendência. Aliás, toda a obra poética de Mauro guarda rigorosa uniformidade qualitativa. Lê-la – e como a poesia deve ser lida, ou seja, em voz alta e com a devida entonação que cada verso requer – é viajar por mundos encantados e ideais, mesmo quando pareça, aos desavisados, carregada de desalento e dor. Não há, em sua relativamente vasta obra, um único poema a que se possa fazer a menor restrição, quer do ponto de vista formal, quer de conteúdo. Sintam a beleza, a ternura e a viva emoção destes versos de “Ilusão”:
“Quando as rosas se abrem
E os ventos carregam para o céu o seu perfume,
As estrelas rendem-se.
As estrelas não sabem
Que as rosas não duram mais que as brisas de primavera”.
Finalmente, para encerrar com chave de ouro esta série de reflexões, em que abordo a forma como alguns de meus escritores favoritos (aqui, por coincidência, todos poetas) trataram deste tema tão batido e, portanto, difícil de ser tratado com originalidade, que é a primavera, transcrevo um poema de puríssima beleza, diamante rigorosamente perfeito, modelo da sublime arte de poetar, composto pela irmã poetisa de Mauro, de quem tanto o saudoso amigo me falou com irrestrita admiração: Quinita Ribeiro Sampaio.
A composição a que me refiro foi extraída de seu livro “Aprendizagem pelo avesso” (Pontes Editores, Campinas, 2012), que a autora generosamente me ofertou não faz muito e sobre o qual tratarei com mais vagar nos próximos dias. Adianto que se trata de uma preciosidade literária ímpar, que recomendo, sem sustos, aos meus leitores sensíveis e de bom gosto. Bem que o Mauro me havia confidenciado que a irmã era extraordinária poetisa. Não exagerou. Se exagero houve, foi para menos. O poema que selecionei é este, intitulado “Canção”:
“Querias-me ausente
e eu louca florescia.
Estendo a ramagem
fecunda e florida,
a tudo dou vida,
querias-me ausente
e eu mais reverdeço.
Em meio a cantigas,
eu louca floresço.
Surjo e é primavera,
incenso o caminho,
sou flor e sou ninho,
querias-me nuvem
e eu só reverdeço.
Por montes, por vales
se o vento desgalha
a rama viçosa,
mais viva renova
a seiva em meu ser.
Querias-me seca
e eu louca floresço.
Querias-me ausente
qual campo maninho
se há sol em meu beijo,
se há chuva em meu pranto,
só sei que floresço,
estendo a ramagem
e mais reverdeço.
Em meio a cantigas
eu louca floresço.
Surjo e é primavera,
incenso o caminho,
sou flor e sou ninho,
querias-me nuvem
e eu só reverdeço!”.
Por esta amostra da poesia de Quinita fica claro, claríssimo, que Mauro não exagerou o talento poético da irmã (e o leitor é testemunha, após a leitura deste impecável poema). O saudoso amigo – não me canso de reiterar – foi sumamente generoso em relação a este escrevinhador, que lhe é e sempre será grato enquanto viver. E que testemunhará, quando, onde e como puder, essa gratidão por ele lhe haver guiado para um mundo além do mundo, repleto de beleza, generosidade e poesia que jamais lhe seria possível alcançar sem sua insubstituível, inquestionável e impresciondível amizade. Obrigado por tudo, amigão!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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