Saturday, October 13, 2012

Ecos ao longo dos passos

Pedro J. Bondaczuk

O poeta Guilherme de Almeida é outro dos tantos escritores incorporados à minha vida por uma série de razões. Algumas delas são indiretas, puramente subjetivas. A principal, todavia, é objetivíssima: sua visão de mundo, sua genialidade e sua magistral maneira de poetar. Tenho, em meu acervo, entre livros e textos esparsos, pelo menos um milhar de poemas seus. É certo que nunca fiz um levantamento para apurar, com exatidão, quantos são. Mas é preciso? Pelo “olhômetro”, faço essa estimativa que, se estiver incorreta, será por subestimação.

Entre as razões subjetivas dessa presença constante de Guilherme de Almeida em minha vida, posso citar um punhado delas. Primeiro, ele nasceu na cidade que tanto amo, na que elegi, espontaneamente, entre milhares que há no mundo, para viver, batalhar pelos meus sonhos, constituir família e ser feliz, no limite de felicidade a que nós, efêmeros humanos, podemos não só aspirar, como conquistar. Claro que me refiro a Campinas, que adotei como minha e que generosamente me acolheu e também me adotou.

A segunda razão subjetiva para essa incorporação é ainda mais indireta. Um dos primeiros prêmios literários que conquistei (e, mesmo tendo um pé atrás em relação a concursos, foram, relativamente, muitos), foi um promovido pela Biblioteca Municipal Guilherme de Almeida, localizada no distrito campineiro de Sousas. O leitor pode até estranhar, mas foi de poesia, e em 1974. Seis anos depois, fui premiado de novo, pela mesma instituição. Desta vez foi pelo meu conto “Lance fatal”, título do meu mais recente livro lançado pela Editora Barauna e que sonho que conste algum dia da biblioteca de todos os que gostem de mim ou que eventualmente apreciem o que escrevo.

Mas o fator subjetivo maior, que me tornou Guilherme de Almeida tão familiar a ponto de considerá-lo membro da minha família, ou seja, um parente muito próximo – embora nunca tenha falado com ele e o tenha visto pessoalmente uma única vez, em um evento bastante concorrido de que participou – é mais remoto e mais profundo. Tem a ver diretamente com a pessoa que mais amei no mundo (amei outras de forma até semelhante, mas nenhuma maior), que foi meu saudoso pai. Claro que ele jamais se apagará da minha memória e da minha pessoa, inclusive fisicamente, pois herdei seus genes, do que muito me orgulho, (pois ele me gerou), além de ter sempre comigo os princípios morais e afetivos, os ensinamentos e os exemplos de conduta que ele me legou.

Explico. Meu pai sempre foi um homem super-informado. No tempo todo em que convivemos, não me lembro de um único dia em que voltasse do trabalho sem trazer consigo pelo menos dois jornais (em geral, “O Estado de São Paulo” e a “Gazeta”). Muitas vezes trazia até quatro (além dos citados, o “Diário da Noite e a “Última Hora”). Seguindo seu exemplo, eu também os lia avidamente. E adquiri o hábito de colecionar recortes, que hoje se constituem em inestimável material de consulta no jornalismo. Aliás, tornei-me jornalista por influência direta do meu pai, embora ele nunca me tenha sugerido esse caminho, ou sequer insinuado, isso. Precisava?

E onde entra Guilherme de Almeida nessa história? O magnífico escritor (foi eleito, a exemplo do que já havia ocorrido com Olavo Bilac, décadas antes, “Príncipe dos Poetas Brasileiros), mantinha uma coluna no “O Estado de São Paulo”, intitulada “Eco ao longo dos meus passos”. Atraído por esse nome, por si só um poema sintético, li-a, a primeira vez, se não me falha a memória em 1954, e, a partir de então, tornei-me “viciado” em sua leitura.

Seu conteúdo (guardadas as devidas proporções) era o mesmo que tento dar (sem o mesmo talento e criatividade, óbvio) a estas minhas reflexões diárias. E suas colunas eram sumamente mais objetivas do que meus textos, posto que tinham a extensão de apenas um terço das que escrevo. Em poucas palavras, portanto, dizia milhares de coisas mais do que eu consigo dizer com minha verborragia. Da leitura das colunas de Guilherme de Almeida no “O Estado de São Paulo”, para a dos seus livros, foi questão de tempo (pouco) e de oportunidade, que não tardou a aparecer.

São inúmeros os poemas sobre a primavera que o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” – arauto da Revolução Constitucionalista de 1932 e autor da letra do Hino dos Expedicionários que representaram o Brasil na Segunda Guerra Mundial – legou à posteridade. Nos últimos dias, reli vários deles e não consegui eleger um único como sendo o melhor. Todos são memoráveis, originais e belos. Como fiz anteriormente com outros escritores, escolhi, na base de “sorteio”, este que tenho a satisfação de partilhar com vocês:

Primavera

“Chegas tão primavera, que os caminhos
correm pedindo flores aos teus pés,
e o amor das asas improvisa ninhos
na árvore cheia de segredo que és.

E és também a paisagem toda: açudes
mansos de sol e azul nos olhos sós;
no pensamento, rios de inquietudes,
e perspectivas de canções na voz.

Vais. E a luz beija a sombra que desfolhas.
Descem plumas dos céus da tarde.
E tu, colhendo à boca de uma estrela, molhas
na água da noite o gesto branco e nu.

Somes. E do teu rastro despovoado
--- sem flores, ninhos, águas e canções,
nem sombra, pluma e estrela do passado ---
brotam florestas e constelações.”

 
É bom, é gratificante, é excelente poder escrever sobre um personagem literário que me suscita tantas reminiscências, mesmo correndo o risco desse meu texto ser considerado por alguns (os tais “idiotas da objetividade” citados amiúde por Nelson Rodrigues e imortalizados num poema por Affonso Romano de San’Anna”) como vago e piegas. À medida que as letras vão se alinhando na telinha do computador, ouço, á minha revelia, o “eco” das lembranças de um passado já tão remoto, gritando, de tanta saudade, “ao longo dos meus passos”, cada vez mais trôpegos e incertos, por conta do desgaste do tempo.


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