Monday, October 29, 2012

Circunstâncias semelhantes

Pedro J. Bondaczuk

A vida de determinados escritores não raro é tão sofrida e até trágica quanto os enredos que criam, nas histórias que escrevem. Admiro e, principalmente, reverencio os que superam todas as dificuldades que se lhes apresentam e persistem, legando à posteridade obras marcantes, que se tornam referenciais da literatura de seus países. Quando se aborda essa questão, alguns nomes vêm, imediatamente, à memória do leitor, como os casos do russo Fedor Dostoievsky e do checo (ou alemão?) Franz Kafka.

No Brasil, todavia, um nome emerge soberano e não apenas por ter sido injustiçado, no período do Estado Novo da ditadura de Getúlio Vargas, mas, sobretudo, pela grandeza e extrema qualidade de sua obra. O leitor esperto já percebeu, com certeza, que me refiro ao alagoano, nascido na cidadezinha de Quebrangulo, Graciliano Ramos. Já escrevi muito a seu respeito e, em um dos meus textos, ousei apelidá-lo de “Dostoievsky brasileiro”, por algumas semelhanças de circunstâncias de vida entre ambos, principalmente pelo fato dos dois terem sido presos em seus respectivos países e de ambos terem se inspirado nessas situações dramáticas e penosas, tão dolorosas e sofridas, para escreverem primorosos livros.

Observo que “semelhança” não significa “igualdade”. Não há vidas iguais, embora haja episódios ligeiramente “parecidos”. É o caso desses dois ilustres escritores, “ícones” da literatura de seus respectivos países. E por que não inverto a proposição e não chamo Dostoievsky de “Graciliano russo”? Por mera questão cronológica. O russo nasceu antes do brasileiro. Na comparação, portanto, não há demérito para nenhum dos dois. Nem poderia haver. Ambos granjearam todos os méritos possíveis e imagináveis, em especial pelo imenso talento que demonstraram. São “monstros sagrados” (e aqui não vai nenhuma conotação pejorativa, óbvio) da literatura mundial.

E por que trago Graciliano Ramos à baila neste espaço? Porque em 27 de outubro de 2012 comemoram-se os 120 anos de seu nascimento (nasceu em 1892). E porque, principalmente, o Estado brasileiro lhe deve muito, por sua intempestiva e injusta prisão (nunca houve acusação formal contra ele). O escritor alagoano, que teve passagem pela política (foi prefeito da cidade de Palmeira dos Índios), foi acusado (sem a mínima prova) de participação na Intentona Comunista de 1935. É verdade que em 1945 filiou-se ao “Partidão”, mas então ele havia sido legalizado. No Brasil, infelizmente, esse tipo de atitude, o de prender e torturar pessoas principalmente inocentes, foi muito comum por parte dos vários ditadores de plantão. Tomara que nunca mais essa conduta autoritária (na verdade, atrabiliária) e desumana se repita.

Sobre as opressões de que foi vítima, Graciliano Ramos escreveu: “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”. Da primeira “coação”, a das regras do idioma, ele se desvencilhou de forma magnífica, impondo um estilo de escrever enxuto, medido, econômico e corretíssimo. Basta ler qualquer de seus livros, notadamente o clássico “Vidas secas”, para comprovar isso, sem sombra de dúvidas. Já da segunda... Acredito que nunca se recuperou por completo. Quem sabe a prisão injusta não tenha acelerado o processo de desenvolvimento do câncer de pulmão que o matou tão precocemente, aos 60 anos de idade, em 20 de março de 1953.

Lembro-me, posto que vagamente, de quando Graciliano morreu. Na época, eu recém havia completado dez anos de idade e já havia lido “Vidas secas” (embora sem compreender muito bem, na oportunidade, o alcance e a genialidade desse livro), que reli, ao que me lembro, pelo menos três vezes, quando já mais maduro e já jornalista.

Em crônica que escrevi em 1992, publicada no Correio Popular de Campinas, intitulada “Graciliano, um perfeccionista”, destaquei, exatamente, essa busca pela perfeição por parte do escritor. Isso comprova que a tal “coação da sintaxe” a que ele se referiu, no texto que citei, ele superou com um pé nas costas. Já a imposta pela Delegacia de Ordem Política e Social... Não acho que tenha se livrado dessa amarga lembrança. Eu, no lugar dele, jamais esqueceria.

Na referida crônica, escrevi, em determinado trecho: “(Graciliano) era, sobretudo, econômico nas palavras. Seus textos são deliciosos de se ler, não apenas pela profundidade da análise psicológica dos personagens – especialmente os flagelados da seca de "Vidas Secas" e os protagonistas dos contos do livro "Insônia" – , mas pela precisão matemática com que expôs suas idéias. Em obras de Graciliano Ramos não há o supérfluo. Suas frases são sempre curtas, exatas, medidas, sonoras e conseqüentes. Ainda assim, o escritor não se mostrava satisfeito com os resultados. Prova disso é o que ele escreveu na página 8 de "Memórias do Cárcere" (1º volume da 5ª edição da Martins Editora, São Paulo, 1965): ‘Por que foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior do que os outros?, pergunta o crítico honesto. E alinha explicações inaceitáveis? Nada disso: acho que é ruim porque está mal escrito. E está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele’".

Arrematei, na sequência, a citada crônica: “Chega a ser comovedora tamanha honestidade e, sobretudo, essa humildade vinda de um escritor consagrado mundialmente, como era o caso de Graciliano. Como essa atitude é diferente da de tantos ‘garatujadores’ que há por aí, arrogantes, porém vazios, que escrevem textos caudalosos, eivados de lugares comuns, desprovidos de estilo, com expressões dúbias e que emitem conceitos ridículos sobre temas que sequer entendem! E estes ainda se atrevem a achar que escrevem bem. Costumam assediar as redações em busca de publicações das ‘preciosidades’ que perpetram”. E, creiam-me, não exagerei.

Já no texto “O Dostoievski brasileiro”, observei: “O que mais agrada o leitor de Graciliano Ramos é a concisão do seu texto. É a parcimônia com que utiliza as palavras, sem excessos e nem faltas, na medida exata. Suas frases são curtas, diretas, medidas, exatas, quase ‘telegráficas’, sem nenhuma ‘gordura’, que venha a tornar o texto prolixo e cansativo. Esse estilo enxuto, no entanto, não compromete a criatividade, na elaboração de personagens e de enredos, e nem tira a força das meticulosas descrições. Pelo contrário: dá-lhes mais vigor. Ressalta, posto que com despojamento vocabular (sua principal característica literária), as imagens, que mais ‘sugere’ do que descreve, geralmente toscas e rudes, como são as pessoas e os lugares do Nordeste brasileiro, cenário das suas obras.O leitor, por exemplo, chega a ‘sentir’, até mesmo, insuportável sede, ao ler ‘Vidas Secas’, tamanho se torna seu envolvimento psicológico com o ambiente, magistralmente descrito por quem viveu e sentiu na carne o fenômeno climático e o drama social de que trata, e que por isso sabe, como ninguém, relatar com clareza e fidelidade, em seus mínimos detalhes”.

Não retiro uma única palavra do que já escrevi sobre Graciliano, Todavia creio que não deva acrescentar mais nada, até para não ser redundante. Abro, porém, uma exceção. Trata-se da justificativa do porque considero a vida e a obra do escritor alagoano “semelhante” (e, reitero, não “igual”) à de Dostoievsky: “Embora separados no tempo e no espaço, nascidos e criados em países com condições, climas, culturas, histórias e realidades tão diferentes, há algo de comum, que os identifica e aproxima. É alguma coisa que vai muito além do mero talento (inegável) que ambos ostentam. Sente-se, em suas obras, sobretudo o que deve ser essencial num bom romance e que os dois têm de sobra: autenticidade”. E não estou certo?


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