Pedro J. Bondaczuk
Ninguém pode escrever a nosso respeito melhor do que nós mesmos (claro, se soubermos nos expressar por escrito; muitos não sabem). Essa afirmação, aparentemente óbvia, não é, todavia, tanto assim. Há biografias, escritas por terceiros, que são, ou podem ser mais detalhadas e esclarecedoras do que as redigidas por nós. Ou seja, do que nossas autobiografias. Entendo que para compreendermos a personalidade e a importância de determinada figura pública que, claro, mereça ser biografada (muitas não merecem), o ideal é que haja duas versões. Uma escrita pela própria e outra por alguém que a conheça, ou pelo convívio (o que seria ideal) ou mediante meticulosa pesquisa em documentos, diários, anotações etc.
Por que cheguei a essa conclusão? Bem, vamos por partes. Em uma autobiografia levamos vantagem importante sobre algum outro que se disponha a escrever a nosso respeito: temos condições de lembrar de determinados fatos, nos envolvendo, que não foram registrados por nós e nem por terceiros em lugar algum e que apenas nós, portanto, tenhamos conhecimento e que, por isso, só nós possamos trazer à baila. Ademais, ninguém pode determinar e nem descrever o que sentimos em alguma circunstância particular, na verdade em nenhuma delas, não é mesmo? Só se pode especular a respeito.
A autobiografia, contudo, traz uma desvantagem: a falta de isenção. E esta sequer é voluntária. É uma tendência natural, espontânea, subconsciente até. Dependendo da personalidade ou do perfil psicológico de quem a redige, ela ou atenua erros e defeitos (o que é mais comum), ou carrega nas tintas ao citar falhas, contradições e determinados comportamentos condenáveis pela sociedade. Nesse aspecto, portanto, a probabilidade de escrever com absoluta isenção (embora, claro, nunca haja essa certeza) é a de outra pessoa escrevendo sobre nós. No primeiro caso ressalta o “como nos vemos”. No segundo, o como os “outros nos vêem”. Daí concluir que uma complementa a outra.
Isso, todavia, não anula a validade e nem o interesse das autobiografias, quando bem escritas e quando sejam de pessoas de fato interessantes, que realmente mereçam ser biografadas pelos seus feitos e por suas ideias. Apenas entendo que as observações que fiz são pertinentes. Pensem a respeito.
O livro “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, lançamento da Editoras Nova Fronteira para comemorar o centenário de nascimento do saudoso jornalista, teatrólogo e escritor, que ocorre em agosto, foge um pouco do padrão usual das autobiografias. Por que? Porque não foi composto como tal. Porque o Anjo Pornográfico não a redigiu com esse fim específico. Todos os textos são dele, mas não foram redigidos com o objetivo de constituir uma “autobiografia”. Sônia Rodrigues “pinçou” o conteúdo em várias fontes, como crônicas, anotações, entrevistas etc. Não inventou nada e não fez nenhum acréscimo.
Os textos, todos, são mesmo de Nelson Rodrigues. Mas Sônia fez a seleção com tal perícia, a ponto de parecer que se trate de uma autobiografia específica. Tecnicamente não é. Mas entendo que é justamente aí que está o grande mérito do livro. Trata-se de um primor de edição. Essa façanha só poderia ser bem sucedida se feita por alguém que conhecesse a obra de Nelson como nenhum outro. E Sônia mostrou que, nesse aspecto, é insuperável.
A jornalista Roberta Pennafort, da Agência Estado (que faço questão de citar), transcreve o seguinte e delicioso trecho do livro: “Eu comecei a estudar, e aí ocorreu aquele negócio da merenda... Eu era pobre, menino pobre, e levava uma banana, e estava muito orgulhoso olhando a banana, mas quando cheguei no recreio com a minha banana, muito maior que o momento da aula, quando puxei minha banana, outro garoto, simultaneamente, olhando paras mim e baixando os olhos e olhando para mim outra vez desembrulhava um sanduíche de ovo que humilhou e liquidou a minha banana. Pão e manteiga, isso para mim era coisa oriental das Mil e Uma Noites”.
Qual biógrafo contaria isso com tanta simplicidade e espontaneidade, que não o protagonista do fato? Ouso dizer que nenhum! Confidências, como esta, não apenas valorizam, mas mais do que justificam a edição do livro. Roberta observa, mais adiante, em sua detalhada matéria: “Nelson Falcão Rodrigues: o menino que, na escola, iria se apaixonar por todas as professoras e também chocá-las. No primário, num concurso de redação, enquanto o coleguinha falava sobre um príncipe que montava um elefante, ele contava uma história de adultério que terminava em assassinato. ‘Foi já com esta A vida como ela é que me senti escritor, porque eu me entreguei a isso com um élan fabuloso. Comecei a ser marcado na aula talvez como um gênio. Era olhado pelas professoras como uma promessa de tarado’, ou autor avaliaria décadas mais tarde”. Coisa típica de Nelson Rodrigues, sem tirar e nem pôr.
Em uma entrevista concedida à “Revista TPM”, quando indagada sobre a principal diferença entre o livro que coordenou e editou com outras biografias escritas sobre o pai, Sônia Rodrigues observou com pertinência: “A diferença é que as outras biografias trazem as visões de outras pessoas sobre meu pai, a seleção que elas fizeram do que teria acontecido na vida dele, as revelações que elas achavam relevantes. ‘Nelson Rodrigues por ele mesmo’ conta o que meu pai achava importante que as pessoas soubessem sobre a vida dele, sobre suas idéias, seus sentimentos. É Nelson Rodrigues puro, sem interpretações”.
Agora me respondam imparcialmente: estas declarações de Sônia Rodrigues comprovam ou não minha tese sobre complementaridade entre biografias e autobiografias? Entendo que sim e sem que restem dúvidas a propósito. E Nelson merece que se fale dele o máximo que se puder, pela sua notória genialidade, até para complementar o que ele mesmo escreveu sobre sua vida e sua obra, posto que sem sequer cogitar numa autobiografia.
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