Monday, October 01, 2012

Poeta universal

Pedro J. Bondaczuk

Há poetas que são universais. Limitar sua nacionalidade a determinado país – por mais que eles se orgulhem de haver nascido ali – é, até certo ponto, fugir da verdade. Pelo seu talento e valor da obra, têm que ser considerados “vozes da humanidade”. São sublimes. São únicos. São imortais. São universais. Enquadra-se, neste caso, sem dúvida, Pablo Neruda.

O poeta nasceu (na cidade de Parral em 12 de julho de 1904) e morreu (em Santiago em 23 de setembro de 1973) no Chile, que tanto amou e projetou com sua arte. Mas foi cidadão do mundo, embora muitos contestem sua universalidade. E a contestação se deve não por imporem restrições à sua arte, que é incontestável, mas por suas convicções ideológicas, já que se tratava de comunista convicto. Esses contestadores, claro, eram os que comungavam (e são os que comungam) de opiniões de direita, antagônicas às suas, o que não se constitui, portanto, em nenhuma novidade e nem causa surpresa.

Aliás, poucos se lembram (a maioria nem mesmo sabe), que Pablo Neruda foi pseudônimo que o poeta adotou. Seu nome de batismo era Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Embora pudesse fazê-lo, não utilizou sua poesia como instrumento de propaganda da ideologia de que comungava. Sua obra, vastíssima (de mais de três dezenas de livros publicados) é de qualidade literária inquestionável. Atrevo-me a dizer que é, acima de tudo, impecável. Seus poemas são recitados até hoje, mundo afora, por milhões de admiradores, quase quarenta anos após sua morte. Citações de seus versos nas redes sociais são muitíssimas, nos mais variados contextos. Raríssimos poetas conseguiram conquistar essa quase unanimidade.

Não por acaso, Pablo Neruda obteve a consagração em 1971, com a conquista do Prêmio Nobel de Literatura, se tornando o segundo chileno a lograr tal façanha (antes dele, Gabriela Mistral já havia sido premiada, em 1945). Destaque-se que a honraria lhe foi conferida no auge da chamada guerra fria, que de uma forma ou de outra, influenciava os jurados suecos que – segundo se diz – sequer atentavam para obras literárias de escritores ou do mundo comunista ou de alguma forma vinculados a ele. A poesia de Neruda, no entanto, é tão universal, categórica e excelente, que se não fosse premiado, levaria esse prêmio ao completo descrédito.

Tenho poucos livros desse escritor, apenas oito. Todavia, neles não encontrei um único e solitário poema ao qual faça qualquer tipo de restrição, quer de caráter formal, quer temático. Transcrevi vários deles, em inúmeras ocasiões, em textos que estão circulando internet afora, em variados espaços, tendo sempre o cuidado de justificar, e comprovar, os motivos da transcrição. E creio que com toda a incoerência que me é atribuída – muitas dessas atribuições justas, mas várias delas meros frutos do desconhecimento do que penso e do que escrevo – em relação a Neruda, pelo menos, invariavelmente mantive a coerência.

Raros poetas (na verdade não conheço nenhum) podem se orgulhar da façanha de serem delirantemente aplaudidos por uma multidão de mais de setenta mil pessoas ao declamarem seus poemas. Mas isso aconteceu com Neruda, em outubro de 1971, poucos dias depois de ser anunciado como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Isso ocorreu no Estádio Nacional de Santiago (de tristíssima memória para os chilenos, por ter sido transformado, dois anos depois, em gigantesca prisão por parte do regime do ditador Augusto Pinochet), quando se apresentou, ao vivo, para um público que escritor algum já teve que encarar, obtendo merecida (e até óbvia) consagração.

A esta altura, o paciente leitor já deve estar perdendo a paciência e se perguntando: “O que, raios, esse escritor tem a ver com primavera, tema destas reflexões?!”. Respondo: tem tudo a ver. Por que? Porque escreveu poemas maravilhosos e marcantes sobre esta estação. E notem como a vida costuma ser irônica. Pablo Neruda, que se recusou de ser candidato à Presidência da República do Chile (e certamente seria eleito), abrindo mão da candidatura em favor de Salvador Allende), morreu exatamente no início de uma primavera: a de 1973, ou seja, num 23 de setembro.

Seria um símbolo ditado pelo acaso e pelas circunstâncias? Considero-o assim. Neruda deixou a vida para conquistar o único tipo de imortalidade a que nós, frágeis e efêmeros humanos, podemos aspirar: a da memória. O do reconhecimento – tão desejado e não raro tão inacessível – do que fomos e, principalmente, do que fizemos.

Dos vários poemas que esse mito literário escreveu sobre a primavera, selecionei este (por pura questão de gosto pessoal), que partilho com vocês:

Primavera

“Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando”.

Observe-se que das quatro estações do ano, a primavera foi a única que o poeta não manifestou desejo de ver. Os desavisados e desatentos podem entender que não lhe dava grande valor. Todavia, expressou, nas entrelinhas, exatamente o contrário. Ou seja, trocava o que considerava a época mais preciosa e valorizada do ano, por um prêmio que entendia ser ainda maior: o olhar da amada. Eu também trocaria... E, por uma até pitoresca ironia, o acaso atendeu ao seu desejo. Levou-o do mundo dos vivos exatamente no início de nova primavera. Só não sei se antes de morrer sua amada continuou ou não olhando em seus olhos, até que estes se apagassem de vez para a vida.

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