Pedro J. Bondaczuk
A literatura latino-americana de língua espanhola vem produzindo, ao longo dos dois últimos séculos, escritores de primeiríssima linha, no romance, na poesia, no conto, na crônica, no ensaio etc., que extrapolam, não apenas as fronteiras dos seus países de origem, mas do continente e, principalmente, do hemisfério. Conquistaram, com seu talento e magia, a merecida universalidade. E quanto mais o tempo passa, mais suas obras se consolidam, se impõem, luzem pela extraordinária beleza e pelas qualidades temáticas, artísticas e de estilo que ostentam.
Nomes como os de Pablo Neruda, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Marquez, Octávio Paz, Mário Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Augusto Roa Bastos, Ernesto Sábato, Júlio Cortazar, Amado Nervo, Rubén Dario, Juan Rulfo e tantos e tantos outros, impõem-se, com justiça, como marcos literários da humanidade. Alguns conquistaram, com amplos méritos, o cobiçado Nobel de Literatura. Outros integram a vasta galeria dos injustiçados, daqueles que mereceram o prêmio sem, no entanto, ser agraciados com ele (na qual devem ser incluídos, sem dúvida, vários brasileiros, como Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa, Cecília Meirelles, Adélia Prado e vários outros).
Embora traduzidos em praticamente todas as mais importantes línguas do Planeta, editados nos mais diversos e remotos lugares do mundo (e, claro, também no Brasil), alguns desses escritores são pouco conhecidos entre nós, mesmo pelos nossos mais eruditos intelectuais. Parece, salvo honrosas exceções, que o brasileiro nutre até certo preconceito em relação a luminares da Literatura da América Latina. Mesmo dos consagrados, que conquistaram o Nobel, é mister frisar. Nossa influência literária – diria estética, incluindo as artes plásticas e a música erudita – é, basicamente, européia, notadamente francesa e russa.
Uma das escritoras menos conhecidas (e menos lidas) em nosso país é a poetisa chilena Lucila Godoy Alcayaga, que se consagrou mundialmente com o pseudônimo de Gabriela Mistral. Trata-se de figura extremamente fascinante, sob qualquer aspecto que se analise, tanto no da sua vida pessoal, marcada pela trágica perda do único homem que, de fato, amou (ele suicidou-se quando tinha apenas 17 anos de idade), quanto na da profissional, (professora por escolha e vocação), e na da literária.
Natural da Patagônia chilena, dos vales frios e permanentemente nevados de Elqui, onde nasceu em 7 de abril de 1889, na cidade de Vicuña, era dotada de extraordinária sensibilidade e habilidade no manejo do idioma. Só poderia, mesmo, acabar poetisa, como acabou. E mais: premiada, com justiça, com o Prêmio Nobel de Literatura em 1945 pelo livro, "Desolación", que segue sendo reeditado, sucessivamente, em vários países da América Latina e principalmente no seu Chile natal, tantos anos após a sua morte. Ganhei essa preciosidade literária de um dos meus genros, que é chileno, e li-a com entusiasmo e devoção, fazendo freqüentes releituras. À medida que o tempo passa, mais a poesia de Gabriela Mistral ganha interesse e permanência, por sua universalidade, transcendência e, sobretudo, por ser atemporal.
Entre suas muitas obras – a maioria dos textos escrita para jornais e álbuns de recordações de amigos – destacam-se: “Ternura” (editada em 1924, dedicada a pequenos poemas, como “Halazco”, “Apegados a mi” e “Piececitos”); “Leituras de mulheres e crianças” (1924); “Nuvens Brancas”(1929, de prosa): “Breve descrição do Chile” (1934); “Tala” (que Gabriela Mistral considerava sua obra-prima, lançada em Buenos Aires, em 1939, cujos direitos foram doados às crianças vítimas da Guerra Civil espanhola, onde está incluído o magnífico poema “Todas deveríamos ser rainhas”); “Poema das Mães” (1950); “Lagar” (em prosa e verso, 1954); “Recados contando o Chile” (póstuma, 1958, recompilada pelo padre Alfonso Escudero); “Epistolário” (1960) e “Poema de Chile” (1966, organizada por sua enfermeira, companheira e amiga, a norte-americana Doris Dana, nove anos após a sua morte).
A notável escritora – que não se considerava como tal, mas como simples professorinha, atividade que tanto amou e exerceu, com carinho, dedicação e incomparável devoção, por muitos e muitos anos – e diplomata – foi, entre outras coisas, cônsul chilena na cidade fluminense de Petrópolis, onde conheceu e se tornou amiga da nossa Cecília Meirelles – morreu, no Hospital Geral de Hampstead, em Nova York, às 4h10 de 10 de janeiro de 1957. Seu falecimento, aos 67 anos, causou enorme comoção no Chile. Seus funerais foram apoteóticos, com honras de chefe de Estado, e ocorreram em 21 de janeiro, em Santiago, reunindo imensa multidão, que acompanhou, comovida e desolada, o sepultamento dos seus restos mortais.
O governo chileno decretou, na oportunidade, três dias de luto oficial. Houve homenagens para a extraordinária escritora em toda a América Latina e na maioria dos países do mundo. Por disposição testamentária – em documento lavrado em Nova York, em 17 de novembro de 1956 – Gabriela Mistral doou todos os direitos autorais de suas obras que fossem publicadas dali em diante, na América do Sul, às crianças de Monte Grande. Foi mais um (e último) gesto de grandeza e de solidariedade desta que é, com toda a justiça, considerada a “Poetisa das Américas”.
Entre os temas prediletos de Gabriela Mistral inclui-se a natureza, com seus diversos e “mágicos” fenômenos. Para os “mortais comuns”, parecem corriqueiros, triviais e sem atrativos. Mas, caso viéssemos, por exemplo, de outro planeta alhures, os consideraríamos como sendo puras magias, tão extraordinários, miraculosos que são. Nem todos (diria, poucos) porém, têm sensibilidade para observá-los, entendê-los, respeitá-los e, sobretudo, exaltá-los, a menos que se trate de poetas. Como admiradora incondicional da natureza, a poetisa chilena dedicou versos e mais versos à primavera. Escolhi, aleatoriamente, o soneto abaixo, que partilho com vocês, embora admita que haja outros tantos, mais expressivos e belos do que este. Mas... para se deliciarem com eles, leiam os livros de Gabriela Mistral. É leitura que vale a pena.
Poda da amendoeira
“A amendoeira eu podo e o céu vejo
com as minhas mãos enfim purificadas,
como se apalpam as faces amadas
com o semblante enlevado do desejo.
Como crio na estrofe mais sincera
em que o meu sangue vivo há de correr,
preparo o coração pra receber
o sangue imenso que há na Primavera.
Dá o meu peito à árvore o seu latido
e escuta o tronco, na seiva escondido,
meu coração como um cinzel profundo.
Os que me amavam julgam-me perdida
e é só o meu peito, aí sustido
na amendoeira, a minha entrega ao mundo”.
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