Pedro J. Bondaczuk
A poetisa Cecília Meirelles, em sua vasta obra poética, dedicou considerável espaço a temas referentes à natureza. São inúmeros os poemas que escreveu tratando de jardins, de flores, de pássaros e de sol, entre outras coisas belas e aprazíveis, assuntos sempre explorados por ela com refinamento, delicadeza e sensibilidade ímpares. É uma delícia ler sua produção. Quando o faço, sinto-me inebriado. Transporto-me, mesmo que à revelia, a bosques floridos e a outros tantos recantos maravilhosos, desses que sonhamos poder freqüentar com assiduidade e de lá nunca sair.
A poesia de Cecília Meirelles guarda certa semelhança com a de Gabriela Mistral, de quem, aliás, foi amiga íntima, no tempo em que a premiada poetisa chilena esteve no Brasil, como consulesa de seu país na aprazível cidade fluminense de Petrópolis. Ademais, ambas foram professoras e apaixonadas pela “arte” de ensinar. Nunca cogitaram abrir mão dessa missão para se dedicarem, de corpo e alma, às letras.
Para ambas, a Literatura era uma espécie de ferramenta didática, para melhor transmitirem suas lições, quando não mero hobby. Ainda assim... tornaram-se memoráveis escritoras, ambas consagradas poetisas. Marcaram, com obras da melhor qualidade, seus nomes, definitivamente, na história literária mundial. Gabriela conquistou um Prêmio Nobel. Cecília, por seu turno, bem que o mereceu., mas... Não serei repetitivo afirmando o óbvio, ou seja, que é mais uma das tantas injustiçadas pelos responsáveis por atribuir essa prestigiosa premiação. Deixo a constatação por conta do leitor. Mas que foi, disso não tenho a menor dúvida!!! Só não concorda comigo quem não conhece sua marcante e copiosa obra.
Dado o fato de ter na natureza um de seus temas preferenciais, é previsível que Cecília Meirelles tenha escrito dezenas, quiçá centenas de poemas alusivos à Primavera. E escreveu mesmo. Quem quer evitar, porém, a previsibilidade sou eu. Pretendo – não somente neste descompromissado texto, mas em todos os que redijo – surpreender sempre o leitor. Às vezes até consigo. E nem me importo de ser apodado de “pretensioso”. Neste caso, sou réu confesso.
Entre tudo o que Cecília Meirelles escreveu, nas dezenas de seus livros e na infinidade de textos que publicou em jornais, selecionei um, específico, que, no entanto não é propriamente um poema, posto que traga muitas de suas características. Trata-se, tecnicamente, de uma crônica. No entanto, extravasa, mina, inunda todas as linhas e parágrafos de poesia da mais fina lavra, embora se trate, reitero, de prosa. Tenho, pois, a grande satisfação de partilhar com vocês esse tão belo texto, e na íntegra, na certeza de que irão se encantar com ele, como eu me encantei:
A Primavera
“A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega. Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol. Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz. Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor. Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera”.
Nada tenho a acrescentar ou a comentar. Qualquer acréscimo ou comentário seria redundante e até intolerável heresia. Além do que, poderia desviar a atenção do leitor do que merece ser lido com a máxima concentração possível. Por isso, a palavra final e definitiva cabe à poetisa.
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