Sunday, October 28, 2012

A título de esclarecimento

Pedro J. Bondaczuk

Os escritores, em geral, e os poetas, em particular, têm uma visão mais aguçada do futuro do que a maioria das pessoas. Ao contrário da idéia geral que se faz desses seres inspirados, "cúmplices dos deuses", eles não estão alheios à realidade. Muito pelo contrário! No entanto, por um dom natural de que são dotados, conseguem enxergar não apenas a realidade, nua e crua, com toda a sua brutalidade e horror. Enxergam além dela. Projetam-na no futuro, tanto o próximo, quanto o bastante remoto.

Assim foi Carlos Drummond de Andrade, cujos 25 anos de morte são lembrados neste ano, deixando um vazio impossível de ser preenchido por outro poeta, embora tenhamos excelentes magos nesta sublime arte de “poetar” (e me perdoem recorrer, de novo, a esse neologismo que tanto aprecio). Poucas pessoas conseguiram ver com tanta agudeza os problemas sociais que afetam a população brasileira, como ele. Os contrastes que nos caracterizam, as contradições que nos dominam, o nosso jeito um tanto moleque de ser, que tem facetas boas e ruins, jamais escaparam da sua aguçada "visão de raio x".

Dizem que ninguém é insubstituível. Concordo com essa afirmação, mas somente em parte. Há claras e nítidas exceções. Há gênios que, por mais que se procurem substitutos para eles, quando morrem, não os encontramos. Não, pelo menos, com a mesma qualidade e competência do que quem partiu. Carlos Drummond de Andrade foi um desses “insubstituíveis”. Com isso, não quero desmerecer ninguém (longe de mim). Apenas constato algo que para mim é óbvio.

Dia desses, ocorreu-me um fato que classifico de “pitoresco”, embora igualmente injusto para comigo. Recebi, há uns quinze déias, um e-mail (aliás, bastante educado e elogioso) de alguém que se confessa meu leitor compulsivo e incondicional admirador. Após massagear meu ego, todavia, o missivista confessou-se “perplexo” pelo fato de eu “não apreciar” o poeta de Itabira. Amigo, acredite, minha perplexidade é infinitamente maior do que a sua. Só queria saber o que o levou a concluir esse tipo de heresia, absolutamente falso e infundado. Eu é que fiquei extremamente perplexo, admirado, pasmo e, não tenha dúvida, bastante irritado.

Meu mal-informado correspondente argumenta que tenho escrito textos e mais textos sobre vários poetas, como Mário Quintana, Jorge Luís Borges, Octávio Paz, Fernando Pessoa, meu saudoso amigo Mauro Sampaio e outros tantos, mas que não redigi “nenhum” alusivo a Carlos Drummond de Andrade. Desculpe, amigo, mas você não é, como afirma, meu “leitor compulsivo”. Ou sua “compulsão” não é do tamanho que você dá a entender. Existe uma terceira possibilidade: ou você é distraído demais.

Fiz um rápido levantamento em meus arquivos e sabe quantos textos meus, alusivos a Drummond, encontrei? Localizei quarenta e oito deles! E tenho certeza que essa quantidade é muito maior. Só não achei outros, porque a minha produção é absurdamente elevada (e os leitores deste e de outros espaços que freqüento na internet são testemunhas disso). Como não gostar justo de Drummond?! Se o fizesse eu estaria assinando um atestado de péssimo gosto e de completo ignorante no que se refere à literatura.

Há, até, um episódio particular envolvendo o poeta de Itabira que eu nunca trouxe a público, para não parecer que esteja contando vantagem. Tenho em meu poder uma carta, escrita de próprio punho (e sua letra é inconfundível), que Drummond me enviou, datada de 14 de agosto de 1987. Ou seja, de três dias antes da sua morte. Mas não tirem conclusões apressadas.

Não fui íntimo do poeta a ponto de trocarmos correspondência (antes fosse!!!). Essa foi a única mensagem, simples e quase formal, que recebi dele. Ocorre que semanas antes dele escrever essa carta, eu havia escrito longo e minucioso ensaio sobre Drummond, que foi publicado no Correio Popular de Campinas. Um amigo comum a nós dois enviou-lhe essa página do jornal. E sua carta (talvez a última que escreveu) foi para agradecer-me a lembrança. Pensei comigo: “o que é isso, poeta?! Eu é que devo lhe agradecer por você existir, por ser tão genial e por haver embalado, por tanto tempo, os meus sonhos”.

Como não gostar de uma pessoa assim?! Isso sem falar de sua genialidade, que é consensual (ou quase). Drummond sempre foi tido como um sujeito sisudo, de poucas palavras, duro como o minério de ferro da sua Itabira natal. Mas por trás daquela carapaça de severidade, havia um coração brando e terno. Atuava um cérebro preocupado com os desajustes sociais deste país que ele tanto amava. Era lúcido em suas observações. Era objetivo em suas colocações. E era, sobretudo, humano na avaliação das fraquezas, próprias e alheias.

Isto é característico dos poetas, dos escritores em geral, videntes por excelência. Afinal, ao contrário do que se imagina, são eles que usufruem plenamente da existência. O iluminado autor de "Recherches du temps perdu", o imortal Marcel Proust, escreveu, a esse propósito: "A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida por conseguinte realmente vivida, é a literatura".

Mas a arte de sonhar, de elucubrar, de gerar imagens mediante o uso do instrumento da palavra, tem um sentido essencialmente prático, embora não pareça. Quem constatou isso foi o "pai" das viagens espaciais, o russo Konstantin Tsiolkowski, um dos primeiros homens a acreditarem realmente que o ser humano poderia viajar no espaço, antes mesmo da invenção do avião, e que desenvolveu toda uma teoria acerca de como isso seria possível. Afirmou: "A princípio, surge a idéia, a fantasia, o conto. Depois deles, o cálculo científico. E então, os homens práticos tornam a idéia real".

Destaco, ao meu querido leitor, que, a menos que seja mais distraído do que o Rosamundo, aquele personagem célebre de Sérgio Porto, o saudoso Stanislaw Ponte Preta, campeão mundial da distração, você deve ter lido, aqui mesmo, neste espaço, o texto intitulado “O mágico lúcido”, que publiquei em 31 de março de 2010. Três meses depois, reproduzi-o em meu blog pessoal, “O Escrevinhador”. Lembra? Ainda não? Reproduzo, pois, a introdução desse texto:

“O assunto, hoje, é Drummond. E tratar do poeta de Itabira, seja por qual motivo for, é sempre agradável, ainda mais ouvindo Beethoven no Sonora, magnífico serviço prestado pelo portal Terra aos amantes do que é estético, belo, divino e mágico. Aliás, para se deliciar com os versos deste “encantador” (não de serpentes, mas de corações) nem seria necessário tamanho requinte, embora ele somente multiplique ainda mais o prazer.

Todavia, hoje não falarei do poeta das Gerais na função de autor, mas de “personagem”. E do livro de uma escritora que ele apreciava, Marlene de Castro Correia. A obra? Tem título que vem a calhar: ‘Drummond: a magia lúcida’. É isso que esse poeta majestoso foi: mágico, sem tirar e nem pôr. Mágico das metáforas. Mágico das emoções. Mágico dos sentimentos. Mágico das idéias. Mágico do que vocês quiserem. E ninguém melhor para falar dele do que essa escritora de quem Drummond declarou, certa feita: ‘Marlene gosta da minha obra, mostra porque gosta e quer que os outros gostem’. Como deixar de gostar de você, querido poeta?!! Só se o sujeito for bronco, muito burro e absolutamente insensível!”

Você se lembra como encerrei o referido texto? Não? Vou refrescar-lhe a memória. Encerrei-o assim: “Como é gostoso escrever sobre Drummond! Tomara que apareçam muitos pretextos, como este, do livro de Marlene de Castro Correa. Mas se não aparecerem... que raios, escreverei sobre ele assim mesmo!!!!”. E asseguro que mantenho essa mesmíssima determinação. Ou seja, a de escrever sobre Drummond, haja ou não pretexto para tal.


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