O vinho da vida
Pedro J. Bondaczuk
O que é literatura? Essa é uma pergunta recorrente, que me faço,
amiúde, e que já respondi inúmeras vezes, sem que, todavia,
nenhuma das minhas respostas, quaisquer das tantas definições que
busquei dar, todas as caracterizações que procurei fazer, enfim,
tudo o que disse e escrevi a propósito me convencesse. Sempre faltou
alguma coisa. O que? Não sei. Se soubesse, preencheria a lacuna e
nem pensaria mais a respeito.
Não faz muito, neste mesmo espaço, em uma de minhas tantas
reflexões diárias (e põe tantas nisso!), indaguei: “A
literatura tem alguma importância prática em nossa vida, ou não
passa de mero passatempo (posto que muito agradável), uma espécie
de refinado lazer?” E ponderei, antes mesmo de arriscar-me a dar
uma resposta: “Sou suspeito (suspeitíssimo) para opinar, posto que
vivo dela (da literatura, claro). É o meio pelo qual obtenho meu
sustento”.
Emendei, mais adiante, já que evito ficar em cima do muro e não
temo em emitir opinião quando a tenho formada, mesmo que incompleta
ou imperfeita: “Entendo, todavia, que a literatura é muito
importante para a ‘fermentação’ de ideias, para o estudo do
comportamento das pessoas e para nos indicar, sobretudo, o que não
devemos fazer, caso tenhamos intenção de obter sucesso em nossas
atividades e na convivência do dia a dia. Contudo, ela tem lá sua
importância, mesmo que relativa. Nem é inútil, como acusam os que
não sabem ou não gostam de ler, e nem essencial à vida, como
pretendem os que a produzem”.
Para fundamentar essa opinião, citei o que escreveu a propósito o
ensaísta escocês, Thomas Carlyle: “A literatura é o vinho da
vida, mas não pode ser o seu alimento”. Claro que concordo com
essa opinião. Caso não concordasse, sequer a citaria. Porquanto, a
bebida, se tomada com moderação, nos dá prazer. Mas se ingerida em
excesso... embriaga e não alimenta.
Não estou sozinho nessa busca de definição do “fazer literário”
e de descobrir se tem ou não utilidade prática. E, se tiver, qual
ela é? Separei dezenas de declarações a propósito, de escritores
dos mais variados gêneros, épocas, países e tendências, embora
não pretenda maçá-lo, caro leitor, com essa enxurrada de erudição.
Cito, todavia, o que o argentino Ricardo Piglia pensa (ou não pensa,
mas inquire) a respeito. Por que o escolhi, e não a outro qualquer?
Por vários motivos. Um deles é que se trata de escritor da minha
geração, meu contemporâneo. O outro (o principal deles) é que
gosto do seu modo de escrever, do seu estilo, das suas ideias, da sua
lucidez. E o outro, ainda, é que penso exatamente a mesma coisa
acerca do que declarou.
Ricardo Piglia afirmou: “Para mim, a literatura é um espaço
fraturado, onde circulam diferentes vozes, que são sociais. A
literatura não está posta em nenhum lugar como uma essência; ela é
um efeito. O que torna um texto literário? Questão complexa, à
qual, paradoxalmente, o escritor é quem menos pode responder. Num
certo sentido, um escritor escreve para saber o que é a literatura”.
Pois é, escrevemos no afã de fazermos essa descoberta. Talvez, até,
já a tenhamos feito e, contudo, não tenhamos certeza sobre nossas
conclusões.
Ainda em referência ao meu texto, que citei anteriormente, ponderei,
na oportunidade: “Se a literatura é importante na vida das pessoas
(e estou absolutamente convicto que é), qual é seu verdadeiro papel
no estudo dos seres vivos (principalmente dos humanos)? Para quê ela
serve? Para divertir, ou para instruir, orientar, analisar e
concluir?
Alguém pode, a esta altura, perguntar: ‘mas não temos a ciência
para isso?’. Temos. Mas somente ela não basta. A vida não se
restringe a leis naturais e imutáveis e nenhum ser vivo reage de
forma absolutamente igual. Ela é sutil e não comporta análises
mecânicas e genéricas. Para sua compreensão, são necessários
exemplos, das várias formas de comportamento das pessoas. Ainda
assim, somos incapazes de compreender em profundidade esse
maravilhoso mistério, esse privilégio, essa magnífica aventura que
é viver”.
E, mais uma vez, recorri a um nome ilustre para fundamentar o que
afirmei. Dessa vez “convoquei”, para o papel de testemunha, o
escritor, sociólogo e filósofo francês, Roland Barthes, que
declarou a respeito: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é
para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. Pois
é, e importa mesmo. E requer de quem a exerce não apenas rigor,
correção (sobretudo na linguagem), mas, sobretudo,
responsabilidade. Afinal, literatura não se faz oralmente, mas
através da escrita.
Ponderemos. Se na conversação informal, naquela que utilizamos no
dia a dia, no lar, no trabalho e em nossas relações sociais; a
comum, trivial, corriqueira e na maioria das vezes eivada de
incorreções vocabulares e gramaticais, e que quase nunca é
policiada, temos enorme responsabilidade por tudo o que dizemos
(embora sequer atinemos), dadas as consequências produzidas, muito
mais importante se torna, é evidente, o que escrevemos, e como o
fazemos. Nunca sabemos, por exemplo, em que mãos esses textos vão
cair, qual o uso que deles será feito e, principalmente, por quem.
Eles podem tanto nos engrandecer, como depor contra nós, quando não
estivermos mais aqui, neste mundo (e provavelmente em nenhum outro)
e, portanto, não pudermos nos defender ou justificar.
A tarefa da comunicação se complica, para muitos (e põe muito
nisso!), quando feita através de texto. Implica, a priori, no
conhecimento da grafia das palavras, das regras gramaticais, do
significado exato de cada termo. A principal virtude de um bom
redator, notadamente do escritor, é a clareza, seguida da concisão.
É indispensável que se faça entendido.
Além disso, o que se escreve precisa ser interessante, tem que
atrair o leitor, e prender a sua atenção. O comunicador (no nosso
caso, o escritor) precisa, sobretudo, atentar para o essencial: o que
vai comunicar e para quem. O que tem a dizer vai esclarecer os
leitores, ajudar a formar uma opinião, servir de acréscimo ao seu
acervo cultural, ou se trata, somente, de um conjunto de
lugares-comuns, de um tosco rosário de críticas inconsequentes, ou
de um monótono desfiar de lamúrias neuróticas?
Caso não vá construir, ajudar ou orientar, o melhor é sequer
escrever. A comunicação é importante demais para ser feita de
forma desleixada, incompetente e desastrada. E Literatura é, antes e
acima de tudo, a forma mais nobre e refinada de comunicação. É “o
vinho da vida”, que dá prazer de fato a quem sabe apreciá-la, mas
cujo consumo requer cautela, posto que “embriaga” e bagunça o
tirocínio e a razão..
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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