Tuesday, December 19, 2017

A essência do mundo

Pedro J. Bondaczuk

Destaco, hoje (de novo), o poeta mineiro que, no meu entender, não teve o sucesso que merecia pela excelência da sua obra. Embora seus poemas devessem constar, pelos seus méritos literários, nas melhores antologias poéticas (senão em todas), é conhecido, somente, num círculo bastante restrito de artistas e de intelectuais. Trata-se de Ruy Apocalypse, autor, entre outros, dos livros “Crônicas da Noite” (Massao Ohno Editora, 1960), “Papoula dos Sete Reinos” e “Realejo de Minas”.

Nascido na cidade de Ouro Fino em 2 de agosto de 1934 (cidade natal do meu querido e saudoso amigo Maurício de Moraes, que brilhou na Literatura e no jornalismo, sobretudo em Campinas, onde foi meu companheiro de Academia Campinense de Letras), o talentoso escritor viveu pouco. Cometeu suicídio, em 4 de março de 1967, jogando-se debaixo de um ônibus na cidade de São Paulo. Por que? Vá se saber! Ruy Apocalypse, destaque-se, é citado pelo escritor Edir Araujo em seu excelente romance “A passagem dos cometas”.

As metáforas de que o poeta mineiro se utiliza são originalíssimas e muito bem colocadas. Seus poemas caracterizam-se, sobretudo, pelo ritmo, pela musicalidade latente, pela espontaneidade. É difícil destacar qualquer deles, dos seus três livros mais conhecidos, pois todos têm qualidade superior. No entanto, em nenhuma seleção da sua obra, este “Crônica V – Do Criador e Suas Raízes”, pode ficar de fora. Entendam o por quê:

“Nesta argila, plasmada no silêncio,
formei teu braço esquerdo, de mentiras.
Das árvores, roubei os galhos mansos
para cobrir teu corpo e tuas iras.

Mulher, além do sal, além do espelho,
és. E rios te cortam. E, nas águas,
há braços de mil náufragos brilhando,
como espadas tebanas! Como espadas!

O rio que te clama, fez-te fonte,
o espelho que te adora fez-te lua.
Para cobrir teu rosto (céu das iras)
eu me deixo ficar, no teu enigma,
como um pastor, dormindo sobre o monte,
sonhado pelo azul, em sons de lira”.

Diante dessa fonte de ternuras, de onde jorra tamanha emoção, não se pode deixar de dar razão, por exemplo, à escritora Edith Sitwell quando afirma: “Como Moisés, o poeta vê Deus na sarça ardente, quando o olho físico, míope ou mal aberto, só vê um jardineiro queimando folhas”. E vislumbra mais, muito mais do que isso. Vê a essência das coisas. Percebe o que há de perpétuo no aparentemente efêmero e banal. Seu talento vale-se de um filtro mágico que extrai beleza do que é, aparentemente, disforme, feio, horrendo. Onde todos veem, apenas, uma poça de água suja, vislumbra o firmamento, a lua e as estrelas.

Outro poema de Apocalypse que me impressionou bastante é este “Crônica VIII – Da Transfiguração Necessária”. Compartilho-o com prazer, com o leitor de bom gosto:

“Que as horas chorem fora das vidraças,
construindo seus musgos sobre os mastros
de velhos casarios alumbrados
e derradeiras praças penitentes.

Que os bairros mais burgueses alinhavem
suas rendas de chá, em velhas xícaras.
Que o sono seja grande e seja amargo
aos que amaram o amor, perdendo a sorte...
para que tudo nasça das idéias
que os ventos espalharam nas migalhas
de luzes e de carnes assombradas.

Do amanhã, outras vozes serão vindas;
e do agora, outros céus serão nascidos,
além do olhar das lâmpadas caídas”.

Ruy Apocalypse comprova, como afirmei, que o poeta não tem o mínimo pudor em desnudar seus sentimentos e emoções em público, neste magnífico poema “Costas de meu ser”:



Em mim eu pouco estou porque não quero
surgir em meio a dor, nuzinho em pêlo.
Hoje, curvado venho ao que eu espero
achar dentro do corpo, para crê-lo.

Rasguei os envelopes. Fui sincero.
Perdi os compromissos, mais o selo
da carta do que sou, no que me gero,
cada noite sem ar, pelo degelo.

Pouco me leio. Pouco me carteio.
Com o que fui por culpa de meus muros.
Perdi-me sem resposta nos escuros.

Em mim eu pouco estou. Tenho receio
de chegar a meus quartos e de ler
linha por linha, as costas de meu ser.

Interessantes, também, são seus versos curtos, quase aforismos, repletos de lirismo e de beleza, como este poema “Taça da manhã”:


Estouram flores
Na garrafa das árvores
--- Há borbulhas de aves
na taça da manhã.

Ou como este “Rodas do sol”:


Velocípedes vermelhos
pedalam, pedalam,
com as rodas do sol.

Ou como este “Cordas de luz”:


E na sanfona do dia,
crianças sonoras
pulam cordas de luz!



Dele, o consagrado poeta paulista Paulo Bonfim, disse que “lembrava um albatroz: estava destinado a voos mais altos” pelo magnífico talento que demonstrava possuir. Classificou-o, inclusive, de “possesso de magia”. Presumo que, se não partisse tão cedo da vida, no auge da angústia, voaria alto, muito alto, altíssimo, perto das estrelas. Talento para isso não lhe faltava. Integraria, fácil, fácil, o panteão nacional dos luminares da poesia, a que fez jus nos seus escassos 33 anos de vida, ao lado de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Cecília Meirelles, Vinícius

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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