Conflito e interação
Pedro J. Bondaczuk
O
relacionamento harmonioso entre as pessoas é o fator determinante do
grau de civilização de um povo. Quanto mais respeito existe entre
os indivíduos, sem que os diferenciais da posição social, da
intelectual e da idade (entre outros), interfiram, mais civilizada é
a sociedade. Esse entendimento, evidentemente, não pressupõe
ausência de conflitos, mas sua sábia administração, naquilo que
os sociólogos denominam de "interação".
A
humanidade, na presente geração, está muito avançada, neste
aspecto, em relação a um passado não tão remoto. A escravidão de
pessoas era um fato normalíssimo no Brasil, por exemplo, até
recentemente (1888). Hoje, embora exista, é tida como atitude
abominável.
Mas
a espécie humana ainda está extremamente atrasada se atentarmos
para o ideal, para o ápice da civilização (a absoluta liberdade
dentro dos limites democráticos, ou seja, onde a nossa termine no
ponto em que a do próximo comece; a espontânea fraternidade entre
todos os indivíduos e a solidariedade total) que talvez jamais venha
a ser alcançado, mas que deve ser incansavelmente perseguido.
Enquanto
houver dominadores e dominados, exploradores e explorados,
privilegiados e excluídos, estaremos distantes "milhões de
anos-luz" da absoluta racionalidade, que por enquanto continua
sendo apenas aspiração e não realidade. O predomínio dos
instintos sobre a razão está muito longe de ter acabado.
A
diversidade de opiniões (seja a respeito do que for) é sempre
salutar. Em raríssimos temas duas pessoas, livres para pensar e
externar o que pensam, concordam integralmente. Até sobre o conceito
que a lógica diz que deveria ser óbvio para todos e absolutamente
consensual, o da existência de Deus, há discordâncias. Uma parte
considerável dos quase seis bilhões de indivíduos que povoam o
Planeta nega que haja qualquer divindade.
E
entre os que creem que ela exista, há profundas divergências, que
vão desde a sua unicidade (muitos acreditam em muitos deuses), até
sua forma, extensão e poder. E é bom que seja assim. É o homem
exercendo sua racionalidade. Irracional é tentar fazer, a força,
com que alguém pense como nós. E o número de vítimas de guerras,
que tiveram por pretexto razões religiosas (envolvendo um grupo
tentando impor seus pensamentos e conceitos a outro através de
armas) ascende a milhões ao longo da história.
Claro
que tais guerreiros não podem ser enquadrados na definição de
"civilizados". As divergências (sejam de que natureza
forem), em vez de conduzir as pessoas à confrontação e até ao
homicídio (como ocorre), deveriam agir no sentido da sua
aproximação, enquanto seres inteligentes e livres.
Os
verdadeiros democratas sabem que democracia não é a ausência de
conflitos. Esta só ocorre nas mais ferozes ditaduras, onde o
pensamento do tirano conta com exclusividade. O ditador é o único
"dono da verdade", até por definição. Sente-se senhor da
vida e da morte dos que estão submetidos à sua tirania, amparado, é
claro, na força bruta, tendo a cumplicidade de seguidores fiéis
(que só mantêm fidelidade enquanto seus interesses são
satisfeitos).
A
história provou inúmeras vezes que sociedades desse tipo nunca
prosperam. As maiores potências da atualidade são aquelas onde os
conflitos não são extintos, mas administrados com sabedoria e
relativa justiça por instituições criadas para esse fim. É o caso
específico dos Estados Unidos. Ou dos países que integram a União
Europeia.
Mesmo
ali, no entanto, ainda há muito, muitíssimo, exagerado
autoritarismo, que nasce dentro da família (com a ausência de
diálogo em casa de pais que "mandam" e não "ponderam")
e se espraia por toda a sociedade.
O
escritor britânico H. G. Wells destaca: "O estimulante conflito
das individualidades é o fim último da vida pessoal e todas nossas
utopias não são senão esquemas para melhorar essa interação".
O
dramaturgo Nelson Rodrigues tem uma forma mais direta e saborosa de
dizer isso. Afirma que "toda unanimidade é burra". E é
mesmo. Na maioria dos casos, reflete unicamente "preguiça de
pensar". Ou domínio de alguém sobre muitos, na maioria das
vezes determinado por ameaças (sutis ou ostensivas, não importa).
A
Carta Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, muito
mencionada e pouquíssimo cumprida, sentencia que "todos os
homens nascem livres, com igualdade de direitos e obrigações".
Mas não é preciso ser nenhum gênio para perceber que isto não
passa de "letra morta". Por incrível que possa parecer, e
por maiores que tenham sido os avanços no relacionamento entre os
indivíduos, ainda há escravidão --- explícita e disfarçada ---
em várias partes do Planeta.
Estima-se
por volta de 200 milhões o número de pessoas que têm sua liberdade
e sua dignidade covardemente violadas, sem que ninguém faça nada
para coibir ou evitar. Uma geração que age dessa maneira, que
tolera tal comportamento, não pode ser considerada civilizada. Que
todos os homens deveriam ser iguais em direitos e deveres é bastante
óbvio, embora nem todos (ou raríssimos) entendam isso. Até porque,
há um fator biológico que atua como argumento decisivo e que
suprime na prática eventuais veleidades de superioridade: a morte.
Quem pode contra esse nivelador?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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