A
Ilha da Solidão
Pedro
J. Bondaczuk
Remexendo
velhos papéis, dia desses, eis que topei com o texto de um
comentário que fiz, em 2 de junho de 1982, pelos microfones potentes
e prestigiosos da então Rádio Educadora de Campinas (atual Rádio
Bandeirantes de Campinas), a propósito da batalha decisiva, que
estava prestes a ser travada pelas tropas argentinas e britânicas,
pela posse do Arquipélago das Malvinas (que para os ingleses sempre
se chamou e é chamado ainda de “Ilhas Falklands”).
Na
ocasião, nos anos finais da ditadura militar no Brasil, falar de
política, publicamente, já era por si só temeridade. Imaginem
fazer comentários a respeito nos meios de comunicação e,
principalmente, através do rádio, cuja concessão poderia ser
cassada a qualquer momento e a emissora fechada! Exigia-se cautela,
responsabilidade e... alta dose de sorte para não se comprometer e
não ter problemas com a censura. E, pior, para não se indispor com
os agentes da ditadura.
Na
época, eu era um dos produtores (o sub-editor) do jornal das 18
horas da emissora e tinha a responsabilidade de, em cinco dias da
semana, de segunda a sexta-feira, apresentar um comentário diário,
de cinco minutos de duração, sobre o principal fato do dia, tanto
da cidade de Campinas, quanto do Brasil e do mundo, e nas áreas da
política e da economia. Era um desafio e tanto! Exerci essa
atividade por dois anos consecutivos, o que comprova, por si só, que
me saí bem da empreitada.
Vivíamos
tempos difíceis, dificílimos e tensos na ocasião. Tive a
felicidade, porém, de atravessá-los incólume, sem nunca ser vetado
pela censura e nem ser convocado (o que poderia custar-me ou anos de
prisão ou até a perda da vida) a dar explicações em algum quartel
pelas opiniões emitidas, que poderiam ser consideradas, facilmente,
“subversivas”, mesmo que não fossem. E não eram de fato. Era
jornalismo puro. Valeram-me, na época, a devida isenção
jornalística que sempre se requer de um profissional de imprensa,
atendo-me, rigorosamente, aos fatos, mesmo emitindo opiniões a
respeito e... sobretudo, sorte. Muita sorte.
Tomo
a liberdade de reproduzir, abaixo, o citado comentário, de há 29
anos, não por seu eventual valor literário (embora ache que tenha
algum), mas por se tratar de um documento de um dos fatos mais
dramáticos daquela época, caracterizada, por si só, por
dramaticidade e riscos, em que não somente o Brasil, mas o Planeta,
viviam sob enorme tensão. O mundo, por exemplo, testemunhava o auge
da Guerra Fria, em que as superpotências de então – Estados
Unidos e União Soviética, lideradas pelos “falcões” Ronald
Reagan e Leonid Brezhnev, respectivamente – levavam ao grau máximo
a irresponsável e perdulária corrida armamentista nuclear.Quanto
dinheiro foi jogado fora na produção massiva dessas armas! Qualquer
“faísca”, qualquer fato aleatório, mesmo que aparentemente
inocente, poderia, então, deflagrar a provavelmente definitiva e
última Terceira Guerra Mundial. Escrevi e li através do microfone
da emissora o seguinte texto, naquele já tão longínquo 2 de junho
de 1982:
“Argentinos
e britânicos já combatem, praticamente, nos arrabaldes da capital
das Ilhas Malvinas. Travam dura luta, que em alguns momentos chega a
ser corpo a corpo, a apenas dez quilômetros dessa minúscula cidade,
na verdade mero vilarejo, com não mais de três mil habitantes. Nos
últimos sessenta dias, essa localidade, até agora desconhecida no
mundo, trocou três vezes de nome.
Era
Port Stanley, até o dia 2 de abril, quando tropas argentinas
ocuparam-na, dando início ao atual conflito. Dessa data, até 5 de
abril, foi chamada de Puerto Belgrano, em homenagem a um militar
argentino do século passado. Finalmente, foi rebatizada para Puerto
Argentino. Agora, esse vilarejo está a pouco, muito pouco, de voltar
às mãos e nome primitivos. E de ser administrado por aqueles que o
ocupavam nos últimos 149 anos, até que a atual junta militar
argentina desse início à atual aventura.
A
batalha que se desenvolve em torno desta aldeia, contudo, está
fadada a entrar para a história da insanidade política deste
século. O desalento, expressado, hoje, pelo secretário-geral das
Nações Unidas, Javier Perez de Cuellar, quanto a uma saída
diplomática de última hora, que evite o aguardado confronto
decisivo, é sintomático. O líder da ONU admitiu, tacitamente, o
fracasso de todas as suas gestões para um cessar-fogo. Disse não
acreditar mais que a trégua ainda seja possível. Para ele, as
posições inflexíveis, tanto dos britânicos, quanto dos
argentinos, inviabilizam qualquer entendimento.
De
Londres, a primeira-ministra Margaret Thatcher, como que querendo se
desculpar, ou se justificar antecipadamente perante as famílias dos
soldados, fez sua derradeira oferta à Argentina. Afirmou, em
pronunciamento pela televisão, que ordenará um cessar-fogo
imediato, desde que o governo argentino se comprometa a retirar todas
as suas tropas do arquipélago invadido em um prazo máximo de 14
dias. Como isto não vai acontecer... Comentando a oferta, a ‘Dama
de Ferro’ admitiu o óbvio: que é ‘uma pena que tantos jovens
venham a morrer nessa guerra’. Só faltava ela exultar com a
carnificina. Talvez secretamente, em seu íntimo, até exulte, quem
sabe.
Pena
não é bem o termo que deva ser aplicado a essa inútil carnificina
que se desenha. As palavras mais apropriadas para esse conflito
seriam ‘loucura’, ‘insensatez’, ‘crime contra a humanidade’
e outras muito mais fortes, aplicáveis aos dois contendores.
Argentinos e britânicos são igualmente culpados, bem como os que
apoiam as respectivas posições belicistas. Mas a senhora Thatcher
lançou água gelada sobre a fervura, se é que a sua ‘oferta’ de
paz pudesse ser levada a sério. Concluiu seu pronunciamento pela TV
afirmando que não acreditava que os argentinos aceitariam sua
derradeira proposta. Ela aceitaria:?
Dessa
forma, os campos nevados da Ilha Soledad, a ‘Ilha da Solidão’ em
nosso idioma, já quase nos limites da inóspita Antártida, vão se
tornar rubros com o sangue de jovens que, no cumprimento do seu dever
de executar o que seus superiores hierárquicos ordenarem, lá
deixaram, estão deixando ou vão deixar seu bem mais precioso: a
vida. E tanto sacrifício por nada. Morrerão anônimos.
Seus
corpos serão enterrados em valas comuns, alguns tão deformados, que
jamais virão a ser sequer identificados. Restarão esquecidos, sós,
sem nome, na solidão gelada da ‘Ilha da Solidão’. Terão,
certamente, mães, esposas e filhas esperando pela sua volta, que
nunca irá acontecer. Os parentes jamais terão certeza se morreram
ou permanecem vivos em algum lugar. Enquanto a guerra estiver em
andamento, for manchete nos noticiários de rádios, televisões,
jornais e revistas, seu sacrifício pela pátria será citado,
enfatizado e glorificado, com palavras bombásticas, sonoras,
retóricas, mas despidas de sinceridade e de conteúdo, por políticos
oportunistas, de olho apenas na manutenção do poder.
Alguns,
neste caso oficiais (coronéis ou generais), poderão até ganhar
monumentos ou dar nomes a ruas ou praças. Os poderosos precisam,
posto que temporariamente, enfatizar o seu sacrifício. Não que
acreditem na sua necessidade, mas para justificar o injustificável:
a sua insensibilidade, cinismo e intransigência. No entanto, tudo
isso apenas será possível – homenagens, cerimônias religiosas e
reverência nacional –, enquanto a guerra for destaque na imprensa.
Depois, quando os acontecimentos do Atlântico Sul
forem superados por novas questões e por novos conflitos – que
serão ‘consumidos’, como todos os outros, por um público ávido
por desgraças, bestializado e imerso num egoísmo ferrenho e sem
limites, encarando as carnificinas como se fossem de mentirinha, mera
ficção –, desses jovens soldados, que lutam por alguma coisa que
sequer sabem definir o que é, não restarão sequer lembranças.
Nenhum pensamento vai mais se voltar para o seu sacrifício inútil,
evitável e insensato. Seus nomes e experiências serão apagados da
memória popular, como se jamais tivessem existido.
Em
suas covas rasas, talvez marcadas apenas por uma tosca cruz de
madeira, se tanto, em todas as primaveras, nesse recanto gelado e
cinzento, na solitária Ilha da Solidão, nas Malvinas, brotarão
delicadas e frágeis flores rubras, da cor do seu sangue generoso.
Ninguém as plantou.
Os
moradores da região evitarão até de passar pelo local, por temerem
os ‘fantasmas’ da sua ingratidão. A natureza, apenas ela, não
esquecerá o sacrifício anônimo desses jovens. E a vida vai
continuar. Até o dia em que a loucura dos homens atingir o paroxismo
e levá-los a plantar gigantescos ‘cogumelos’ de fogo nos quatro
quadrantes do mundo. Ou, o que é improvável, até que a razão
venha a preponderar sobre os instintos, quando só então a violência
terá uma chance (posto que mínima) de ser banida da Terra e do
espírito humano. Caso dê a lógica, no entanto, este planeta azul e
frágil será todo ele uma inóspita e silenciosa 1Ilha da Solidão’,
na imensidão do espaço...”
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