Transição é teste decisivo
da nova união
Pedro J. Bondaczuk
A nova União Soviética, que
está renascendo de forma dramática e surpreendente é, de fato,
como um deputado desse país afirmou, após tomar conhecimento da
proposta de Mikhail Gorbachev que foi apoiada pelos líderes de dez
Repúblicas, principalmente pelo presidente russo, Bóris Yeltsin,
"algo que o mundo nunca viu". O sistema de sovietes, uma
das bases do comunismo, frise-se, também o foi.
Da I Internacional, liderada
por Karl Marx, iniciada em Londres em 28 de setembro de 1864, até a
Revolução Bolchevique de 1917, o marxismo não havia conseguido
fincar raízes em lugar algum. Antes da URSS, os trabalhadores
tentaram conquistar o poder na Grã-Bretanha, em 1838, no que a
história registra como "Movimento Cartista".
Claro que tudo não passou de
uma tentativa visionária, de um bando de idealistas, cujos sonhos
eram infinitamente maiores do que os recursos de que dispunham para
sua concretização.
Ademais, tal iniciativa
britânica nada tinha a ver com as idéias de Marx. Em 18 de março
de 1871, os parisienses criaram a chamada "Comuna de Paris",
que durou poucas semanas e acabou não dando em nada. O comunismo,
portanto, foi uma inovação soviética para o mundo. Não deu certo,
é verdade. Mas não se pode simplesmente ignorar o passado e jogar
74 anos de história numa lata de lixo.
É preciso que os líderes da
URSS examinem tudo o que ocorreu neste longo período sem
preconceitos, sem auto-indulgências e sem excessivo complexo de
culpa e extraiam o que de bom restou. Até porque, é impossível se
fazer uma retroação ao passado para corrigir todos os erros,
reparar todas as injustiças, ressuscitar todos os massacrados,
remover as angústias e sofrimentos de todos os oprimidos, dos que
foram encarcerados por causa de suas convicções, dos que tiveram
suprimida a sua chance de viver. Este último (a supressão das
oportunidades) é o maior dos crimes que se podem cometer contra um
ser humano. Afinal, a vida não tem reprise.
Gorbachev, que já entrou para
a história por ter começado tudo isso, não precisaria fazer mais
nada. Cumpriu seu papel enquanto "homem do destino",
apelido que lhe foi dado por jornalistas norte-americanos. Poderia
apresentar sua renúncia e ir para a Criméia escrever suas memórias.
Todavia, sente que sua obra
estaria incompleta se, ao cabo do processo que iniciou, a União
Soviética simplesmente deixasse de existir. Por isso, propôs esse
novo tipo de confederação, algo que se assemelha ligeiramente ao
que a Europa dos 12 pretende implantar a partir do próximo ano,
guardando, logicamente, suas peculiaridades.
A pergunta que fica no ar é
se os cidadãos vão entender o que Gorbachev quer fazer. Tudo o que
é novo assusta e precisa de um tempo para os ajustes. Quando se
adquire um carro zero quilômetro, o próprio revendedor prevê
revisões periódicas, constantes da garantia. Nelas é que se farão
as regulagens da máquina para que ela funcione conforme o projetado.
Em termos de organização de
Estado a adaptação costuma ser mais dramática. Exige somas enormes
de sacrifícios que nem sempre --- ou quase nunca --- as pessoas
estão dispostas a fazer. Afinal, não se tratam de números, como os
políticos são tentados a imaginar, mas de seres humanos que, acima
das aspirações coletivas, têm as individuais por primazia.
Um episódio retrata bem as
dificuldades que os reformistas irão enfrentar. Em 2 de maio de
1990, o jornal liberal soviético "Komersant" publicou um
editorial sobre as mudanças que estavam para sem implantadas na
economia que, em certo trecho, diz:
"Milhões de
trabalhadores soviéticos ficaram alarmados com as declarações de
assessores econômicos de Gorbachev sobre o fechamento de empresas
deficitárias, liberação de preços e, principalmente, sobre a
legalização da propriedade privada. Cinqüenta e oito por cento dos
soviéticos são favoráveis ao racionamento como o melhor remédio
para a escassez de produtos de acordo com pesquisa feita por este
jornal. No ano passado, apenas 40% dos soviéticos se manifestaram a
favor da medida. Isso significa que nos últimos 12 meses 50 milhões
de pessoas deixaram de lado qualquer tentativa de compreender o que é
necessário fazer para transformar a situação econômica do país.
A oposição às reformas está crescendo e o tempo não trabalha a
seu favor".
Pois bem, estas mudanças
foram consideradas "tímidas" em demasia, tanto pelos
reformistas radicais locais, quanto pelos conselheiros econômicos
ocidentais. Agora, com a linha dura comunista afastada do poder,
medidas muito mais duras do que aquelas que assustaram tanto a
população vão ser implementadas.
A implementação, todavia,
será impossível, caso a União Soviética não conte com a ajuda
ocidental. O país precisa de pelo menos US$ 210 bilhões --- mais do
dobro da dívida externa brasileira --- num período de cinco anos,
para obter o equilíbrio econômico e voltar a crescer.
Caso não conte com esse
suporte financeiro, pode estar condenado ao caos. O próprio
Gorbachev alertou para o perigo de explosões incontroláveis de
violência popular, com saques generalizados, na base do "salve-se
quem puder". O primeiro grande teste para o novo sistema vai ser
agora, já no próximo inverno, que começa às vésperas do Natal no
Hemisfério Norte.
O Ocidente ainda não entendeu
o que está se passando na URSS. Pelos comentários de analistas
políticos e declarações dos estadistas ocidentais percebe-se que o
processo de desagregação soviético é analisado ainda sob a óptica
da Guerra Fria. De um revanchismo estúpido e sobretudo cego.
(Artigo publicado na página
20, Internacional, do Correio Popular, em 5 de setembro de 1991).
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