Saturday, June 17, 2017

Transição é teste decisivo da nova união


Pedro J. Bondaczuk


A nova União Soviética, que está renascendo de forma dramática e surpreendente é, de fato, como um deputado desse país afirmou, após tomar conhecimento da proposta de Mikhail Gorbachev que foi apoiada pelos líderes de dez Repúblicas, principalmente pelo presidente russo, Bóris Yeltsin, "algo que o mundo nunca viu". O sistema de sovietes, uma das bases do comunismo, frise-se, também o foi.

Da I Internacional, liderada por Karl Marx, iniciada em Londres em 28 de setembro de 1864, até a Revolução Bolchevique de 1917, o marxismo não havia conseguido fincar raízes em lugar algum. Antes da URSS, os trabalhadores tentaram conquistar o poder na Grã-Bretanha, em 1838, no que a história registra como "Movimento Cartista".

Claro que tudo não passou de uma tentativa visionária, de um bando de idealistas, cujos sonhos eram infinitamente maiores do que os recursos de que dispunham para sua concretização.

Ademais, tal iniciativa britânica nada tinha a ver com as idéias de Marx. Em 18 de março de 1871, os parisienses criaram a chamada "Comuna de Paris", que durou poucas semanas e acabou não dando em nada. O comunismo, portanto, foi uma inovação soviética para o mundo. Não deu certo, é verdade. Mas não se pode simplesmente ignorar o passado e jogar 74 anos de história numa lata de lixo.

É preciso que os líderes da URSS examinem tudo o que ocorreu neste longo período sem preconceitos, sem auto-indulgências e sem excessivo complexo de culpa e extraiam o que de bom restou. Até porque, é impossível se fazer uma retroação ao passado para corrigir todos os erros, reparar todas as injustiças, ressuscitar todos os massacrados, remover as angústias e sofrimentos de todos os oprimidos, dos que foram encarcerados por causa de suas convicções, dos que tiveram suprimida a sua chance de viver. Este último (a supressão das oportunidades) é o maior dos crimes que se podem cometer contra um ser humano. Afinal, a vida não tem reprise.

Gorbachev, que já entrou para a história por ter começado tudo isso, não precisaria fazer mais nada. Cumpriu seu papel enquanto "homem do destino", apelido que lhe foi dado por jornalistas norte-americanos. Poderia apresentar sua renúncia e ir para a Criméia escrever suas memórias.

Todavia, sente que sua obra estaria incompleta se, ao cabo do processo que iniciou, a União Soviética simplesmente deixasse de existir. Por isso, propôs esse novo tipo de confederação, algo que se assemelha ligeiramente ao que a Europa dos 12 pretende implantar a partir do próximo ano, guardando, logicamente, suas peculiaridades.

A pergunta que fica no ar é se os cidadãos vão entender o que Gorbachev quer fazer. Tudo o que é novo assusta e precisa de um tempo para os ajustes. Quando se adquire um carro zero quilômetro, o próprio revendedor prevê revisões periódicas, constantes da garantia. Nelas é que se farão as regulagens da máquina para que ela funcione conforme o projetado.

Em termos de organização de Estado a adaptação costuma ser mais dramática. Exige somas enormes de sacrifícios que nem sempre --- ou quase nunca --- as pessoas estão dispostas a fazer. Afinal, não se tratam de números, como os políticos são tentados a imaginar, mas de seres humanos que, acima das aspirações coletivas, têm as individuais por primazia.

Um episódio retrata bem as dificuldades que os reformistas irão enfrentar. Em 2 de maio de 1990, o jornal liberal soviético "Komersant" publicou um editorial sobre as mudanças que estavam para sem implantadas na economia que, em certo trecho, diz:

"Milhões de trabalhadores soviéticos ficaram alarmados com as declarações de assessores econômicos de Gorbachev sobre o fechamento de empresas deficitárias, liberação de preços e, principalmente, sobre a legalização da propriedade privada. Cinqüenta e oito por cento dos soviéticos são favoráveis ao racionamento como o melhor remédio para a escassez de produtos de acordo com pesquisa feita por este jornal. No ano passado, apenas 40% dos soviéticos se manifestaram a favor da medida. Isso significa que nos últimos 12 meses 50 milhões de pessoas deixaram de lado qualquer tentativa de compreender o que é necessário fazer para transformar a situação econômica do país. A oposição às reformas está crescendo e o tempo não trabalha a seu favor".

Pois bem, estas mudanças foram consideradas "tímidas" em demasia, tanto pelos reformistas radicais locais, quanto pelos conselheiros econômicos ocidentais. Agora, com a linha dura comunista afastada do poder, medidas muito mais duras do que aquelas que assustaram tanto a população vão ser implementadas.

A implementação, todavia, será impossível, caso a União Soviética não conte com a ajuda ocidental. O país precisa de pelo menos US$ 210 bilhões --- mais do dobro da dívida externa brasileira --- num período de cinco anos, para obter o equilíbrio econômico e voltar a crescer.

Caso não conte com esse suporte financeiro, pode estar condenado ao caos. O próprio Gorbachev alertou para o perigo de explosões incontroláveis de violência popular, com saques generalizados, na base do "salve-se quem puder". O primeiro grande teste para o novo sistema vai ser agora, já no próximo inverno, que começa às vésperas do Natal no Hemisfério Norte.

O Ocidente ainda não entendeu o que está se passando na URSS. Pelos comentários de analistas políticos e declarações dos estadistas ocidentais percebe-se que o processo de desagregação soviético é analisado ainda sob a óptica da Guerra Fria. De um revanchismo estúpido e sobretudo cego.

(Artigo publicado na página 20, Internacional, do Correio Popular, em 5 de setembro de 1991).



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