Senhores da vontade
Pedro
J. Bondaczuk
A
afirmação que, amiúde, mais ouço por aí, notadamente dos jovens
(mas não somente deles, é verdade), quando admoestados por algum
erro cometido ou quando se rebelam contra alguma ordem (justa ou
injusta, não importa) é: “ninguém manda em mim! Sei o que faço
e não preciso que fiquem me dizendo o que, quando e como fazer”.
Claro que é uma baita tolice. Não existe (e provavelmente jamais
existiu) alguém que seja ou que fosse totalmente autossuficiente e,
mais do que isso, senhor absoluto da sua vontade.
Temos
(todos nós, sem exceções) que prestar, sempre, algum tipo de
contas dos nossos atos a alguém, por um motivo ou por outro. Quando
jovens, por exemplo, temos que nos reportar (gostemos ou não) para
os pais e/ou professores. Quando adultos, para a esposa; os chefes,
no nosso trabalho; os políticos, para seus eleitores e vai por aí
afora. Até os ditadores têm que se explicar para os que os apoiam e
mantêm, sem cuja força e apoio não se sustentariam no poder sequer
por minutos.
Mas
não é dessa “vontade” que vou tratar hoje, nestas
descomprometidas reflexões, mas de outra, mais sutil e mais
onipresente do que se pensa, que é a de não se deixar escravizar
por nenhum tipo de vício, seja ele qual for. Raras são as pessoas
que não têm absolutamente nenhum. Se não recorrem às drogas e ao
álcool (que reputo os piores, por afetarem a consciência), são
escravas do cigarro, cujos malefícios todos conhecem e, ainda assim,
não conseguem se livrar desse nefasto hábito (é o meu caso). Ou,
então, têm compulsão pelo jogo que, via de regra, lhes determina a
ruína, material e moral. Ou são viciadas em outra coisa qualquer,
por mais inocente e inócua que seja, mas que está acima da sua
vontade.
Frise-se
que alguns vícios são quase tão antigos quanto o próprio homem.
Ninguém sabe determinar com precisão, por exemplo, quem foi que
fabricou a primeira bebida alcoólica. Bebe-se, de forma desregrada e
compulsiva, creio que desde as cavernas primitivas (quando,
acidentalmente, com certeza, nosso ancestral primitivo fermentou
algum cereal, bebeu a infusão, tomou gosto por ela e... se viciou).
No
livro de Gênesis, na Bíblia, há o relato de um porre homérico de
ninguém menos que o patriarca Noé (que inspirou tanto Michelangelo
Buonarroti quanto Giovanni Bellini a pintarem suas preciosas e
conhecidas telas sobre o tema). Tão logo colheu as primeiras uvas
que plantou, após as águas do Dilúvio haverem baixado, esse santo
e exemplar homem produziu, com elas... o vinho. Com certeza, antes
dele, a bebida já era conhecida e, mais, era muito popular e
consumida em profusão. Se assim não fosse, o redator do Gênesis,
certamente, teria assinalado esse fato. Noé não foi, pois, o seu
inventor (ou descobridor, como queiram). Embebedou-se e, como sempre
acontece com quem se embriaga, deu vexame. Ficou nu e expôs a nudez
ao filho Cam.
Este
(como acontece via de regra com quem se depara com algum bêbado),
fez chacota com a embriaguez do pai. E, por haver desrespeitado o
patriarca (num tempo em que este tinha o poder de vida e de morte
sobre sua prole) foi amaldiçoado por ele, tão logo o porre passou,
maldição esta que teria recaído sobre toda a sua descendência.
Alegoria, ou realidade, trata-se de um dos primeiros registros
escritos sobre alcoolismo e seus nefastos efeitos. Nenhum de nós,
portanto, é pleno senhor da vontade. A rigor, nem pleno e nem
parcial. Se houver alguém que o seja (detesto generalizações),
este será uma raridade, digna de admiração e, sobretudo, de
imitação.
Pessoas
com baixa estima, desajustadas, rebeldes – daquela rebeldia
estúpida, por ser sem causa – são mais propensas às compulsões,
que invariavelmente descambam em vícios. E não se trata, apenas, de
“perdedores”, mas também de homens e mulheres brilhantes, que
chegam a inscrever seus nomes na história, por notáveis obras que
produzem. São muitos os escritores, por exemplo, que se
notabilizaram por serem alcoólatras, ou viciados em drogas, ou
tabagistas contumazes. Não os citarei, nominalmente, pela reverência
que me merecem, pelos livros que produziram e que me ilustraram e
ilustram o espírito todos os dias.
Cito,
apenas, um notório jogador, que perdeu fortunas em carteado, nos
dados ou na roleta, nos diversos cassinos da Europa, para a alegria
dos proprietários dessas casas de jogos. Refiro-me ao escritor russo
Fedor Dostoievski, autor, entre tantas obras-primas, de livros como
“Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamazov”, “O idiota” e
“Recordação da casa dos mortos”, entre tantos outros.
Em
suas cartas, ele procurou, em várias ocasiões, explicar aos
parentes e amigos o inexplicável. Tentou justificar o que o movia a
agir dessa forma, mas, invariavelmente, acabou admitindo (e nem
poderia ser diferente) que seu vício era, na verdade, enorme
deficiência de caráter. Claro que isso não desmerece seu talento e
muito menos sua obra. Cito-o, reitero, somente para exemplificar o
quanto um vício, seja lá qual for, anula nossa vontade a ponto de
nos escravizar.
Em
sua correspondência com o irmão Mikhail, datada de setembro de
1863, remetida de Turim, na Itália, por exemplo, Fedor Dostoievski
comenta sua compulsão pelo jogo. Inicia a referida carta dessa
maneira: “Você pergunta em sua carta como um homem pode apostar o
seu último kopek, especialmente quando está viajando com alguém
que ama. Permita-me dizer-lhe, caro Misha, que em Wiesbaden
(Alemanha) eu engendrei um sistema de jogo que testei e me rendeu 10
mil francos”.
E
prossegue: “Mas na manhã seguinte, em meu excitamento, deixei de
ater-me ao meu sistema e perdi tudo. À noite voltei ao meu sistema,
ative-me rigorosamente a ele e rapidamente e sem esforço ganhei
novamente 3 mil francos”. E apresenta esta justificativa
(esfarrapada, é claro) do por que jogava: “Agora diga-me, depois
de isso acontecer, como é que eu poderia querer ir embora, como
poderia deixar de acreditar que, enquanto fosse ágil com o meu
sistema, a felicidade estaria ao meu alcance? E eu preciso de
dinheiro – para mim, para você, para minha mulher, para
capacitar-me a escrever minha novela”.
Desculpas,
desculpas e mais desculpas... Todo viciado, seja qual for seu vício,
invariavelmente, tem uma engatilhada para justificar sua fraqueza.
Claro que, por mais verossímil que pareça, não justifica
coisíssima alguma. Aldous Huxley tenta explicar a compulsão que
descamba em algum vício, em um dos seus romances (não me recordo
qual, mas, provavelmente, é no “Admirável mundo novo”),
colocando a seguinte observação na boca de um dos seus personagens:
“A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em
seus pontos baixos (e tão monótona, em suas eminências), tão
pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se,
ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre
os principais apetites da alma”. Como se vê, até explica, mas não
justifica.
Somos,
pois, senhores absolutos da nossa vontade? Ou, pelo menos, relativos?
Pensamos e fazemos apenas o que queremos? Não, não e não! Quem faz
isso? Apontem-me um, um único desses seres tão poderosos e
autodisciplinados, a ponto de serem auto-suficientes e dominarem, com
total firmeza, suas fraquezas deficiências e paixões, e lhes
apontarei um santo! Da minha parte, confesso, não conheço ninguém
que sequer se aproxime desse padrão.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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