Tuesday, June 20, 2017

Sigilo foi traição à Europa

Pedro J. Bondaczuk

A União Soviética sempre teve por hábito esconder da opinião pública, tanto interna (se é que existe naquele país), quanto externa, tudo o quanto de ruim ocorra em seu território. Seus veículos de comunicação não costumam divulgar desastres aéreos, ferroviários ou de que natureza sejam. A morte de membros do governo, ou de qualquer nível um pouquinho superior na hierarquia partidária, leva dias para ser anunciada. E quando a informação é dada, vem acompanhada do indefectível necrológio, louvando as virtudes do morto mas sem nenhum detalhe.

Aconteceu dessa maneira quando do falecimento de Joseph Stalin, em 1953. A população das grandes cidades soviéticas só ficou inteirada do fato quatro dias após a ocorrência. O mesmo procedimento foi repetido com a moléstia que acometeu o ex-líder Leonid Brezhnev. O assunto a respeito de sua saúde foi um autêntico tabu por um vasto tempo. Quando Yuri Andropov adoeceu, aconteceu a mesma coisa. E na oportunidade da sua morte, os cidadãos russos e o mundo inteiro tomaram conhecimento disso vários dias depois da ocorrência.

Na oportunidade da doença do ex-presidente e ex-secretário-geral do Partido Comunista (ele acumulou as duas funções), Constantin Chernenko, mais uma vez o procedimento foi adotado. Afinal, como diz o adágio popular, "o lobo perde o pêlo, mas não perde o vício". Entretanto, embora essa maneira de agir cause estranheza entre nós, ela é admissível. Se os soviéticos querem proceder dessa forma, o problema é deles.

Mas o fato do Cremlin esconder o acidente na usina termonuclear de Chernobyl, na Ucrânia, disparadamente a mais grave catástrofe atômica de toda a história, é inadmissível. E mais do que isso, é criminoso. Afinal de contas, o assunto extrapolou as fronteiras da União Soviética, já que uma enorme nuvem radioativa neste momento está percorrendo boa parte da Europa, levando sinistras perspectivas para milhares, quiçá milhões, de pessoas.

A saúde de grandes contingentes de poloneses, dinamarqueses, suecos, finlandeses, noruegueses e sabem-se lá quem mais, está gravemente exposta. As atividades econômicas dos países afetados certamente irão sofrer com o fato, pois é sabido que a radioatividade contamina a agricultura e inutiliza diversas terras propícias à produção. O estrago, como se vê, é enorme.

Caso o Cremlin agisse de acordo com o bom senso e, principalmente, de acordo com o que determinam tratados internacionais que eles firmaram a esse respeito, possivelmente um mal maior poderia ser evitado. Quem sabe, o reator de Chernobyl não teria se fundido e as emanações de radiação ficariam contidas apenas num círculo bastante restrito. O que vier a acontecer doravante a milhares de pacatos cidadãos europeus será responsabilidade direta da União Soviética.

As mortes por câncer que eventualmente se verificarem na zona afetada (e as previsões são as mais alarmantes possíveis) equivalerão a crimes. É verdade que não dolosos, posto que certamente ninguém na URSS desejou que uma catástrofe dessa natureza fosse deflagrada. Mas não deixará de ter um caráter culposo, motivado por imperícia e principalmente por imprudência. No primeiro caso, por haver sido registrada a falha que conduziu ao superaquecimento verificado na usina. No segundo, e este mais grave, porque o desastre não foi comunicado em tempo hábil, para que as populações européias se prevenissem contra os seus efeitos.

Talvez hoje o Ocidente nem mesmo viesse a saber que algo de tamanha gravidade houvesse ocorrido se porventura os suecos não tivessem detectado níveis anormais de radiação. É inadmissível que na época das comunicações e quando o mundo está virtualmente minado por engenhocas nucleares, comportamentos dessa natureza ainda se verifiquem. Essa foi uma traição russa imperdoável à Europa. Muito maior do que as suas invasões à Hungria e à Checoslováquia.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 1º de maio de 1986)



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