Sigilo foi traição à Europa
Pedro J. Bondaczuk
A União Soviética sempre
teve por hábito esconder da opinião pública, tanto interna (se é
que existe naquele país), quanto externa, tudo o quanto de ruim
ocorra em seu território. Seus veículos de comunicação não
costumam divulgar desastres aéreos, ferroviários ou de que natureza
sejam. A morte de membros do governo, ou de qualquer nível um
pouquinho superior na hierarquia partidária, leva dias para ser
anunciada. E quando a informação é dada, vem acompanhada do
indefectível necrológio, louvando as virtudes do morto mas sem
nenhum detalhe.
Aconteceu dessa maneira quando
do falecimento de Joseph Stalin, em 1953. A população das grandes
cidades soviéticas só ficou inteirada do fato quatro dias após a
ocorrência. O mesmo procedimento foi repetido com a moléstia que
acometeu o ex-líder Leonid Brezhnev. O assunto a respeito de sua
saúde foi um autêntico tabu por um vasto tempo. Quando Yuri
Andropov adoeceu, aconteceu a mesma coisa. E na oportunidade da sua
morte, os cidadãos russos e o mundo inteiro tomaram conhecimento
disso vários dias depois da ocorrência.
Na oportunidade da doença do
ex-presidente e ex-secretário-geral do Partido Comunista (ele
acumulou as duas funções), Constantin Chernenko, mais uma vez o
procedimento foi adotado. Afinal, como diz o adágio popular, "o
lobo perde o pêlo, mas não perde o vício". Entretanto, embora
essa maneira de agir cause estranheza entre nós, ela é admissível.
Se os soviéticos querem proceder dessa forma, o problema é deles.
Mas o fato do Cremlin esconder
o acidente na usina termonuclear de Chernobyl, na Ucrânia,
disparadamente a mais grave catástrofe atômica de toda a história,
é inadmissível. E mais do que isso, é criminoso. Afinal de contas,
o assunto extrapolou as fronteiras da União Soviética, já que uma
enorme nuvem radioativa neste momento está percorrendo boa parte da
Europa, levando sinistras perspectivas para milhares, quiçá
milhões, de pessoas.
A saúde de grandes
contingentes de poloneses, dinamarqueses, suecos, finlandeses,
noruegueses e sabem-se lá quem mais, está gravemente exposta. As
atividades econômicas dos países afetados certamente irão sofrer
com o fato, pois é sabido que a radioatividade contamina a
agricultura e inutiliza diversas terras propícias à produção. O
estrago, como se vê, é enorme.
Caso o Cremlin agisse de
acordo com o bom senso e, principalmente, de acordo com o que
determinam tratados internacionais que eles firmaram a esse respeito,
possivelmente um mal maior poderia ser evitado. Quem sabe, o reator
de Chernobyl não teria se fundido e as emanações de radiação
ficariam contidas apenas num círculo bastante restrito. O que vier a
acontecer doravante a milhares de pacatos cidadãos europeus será
responsabilidade direta da União Soviética.
As mortes por câncer que
eventualmente se verificarem na zona afetada (e as previsões são as
mais alarmantes possíveis) equivalerão a crimes. É verdade que não
dolosos, posto que certamente ninguém na URSS desejou que uma
catástrofe dessa natureza fosse deflagrada. Mas não deixará de ter
um caráter culposo, motivado por imperícia e principalmente por
imprudência. No primeiro caso, por haver sido registrada a falha que
conduziu ao superaquecimento verificado na usina. No segundo, e este
mais grave, porque o desastre não foi comunicado em tempo hábil,
para que as populações européias se prevenissem contra os seus
efeitos.
Talvez hoje o Ocidente nem
mesmo viesse a saber que algo de tamanha gravidade houvesse ocorrido
se porventura os suecos não tivessem detectado níveis anormais de
radiação. É inadmissível que na época das comunicações e
quando o mundo está virtualmente minado por engenhocas nucleares,
comportamentos dessa natureza ainda se verifiquem. Essa foi uma
traição russa imperdoável à Europa. Muito maior do que as suas
invasões à Hungria e à Checoslováquia.
(Artigo publicado na página
10, Internacional, do Correio Popular, em 1º de maio de 1986)
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