De uma mente a outra
Pedro J. Bondaczuk
A atividade literária –
como ademais a dos artistas de todas as outras artes – tem sido
contestada por alguns, que se dizem “práticos e objetivos”, e
que, por isso, a encaram como algo supérfluo, como uma grande
inutilidade, sem a qual as sociedades seguiriam, normalmente, seu
curso, sem que sentissem grande falta ou até nenhuma. Discordo!
Claro que sou suspeito para opinar, porquanto sou escritor e,
portanto, engajado à Literatura, que para mim é mais do que paixão:
transformou-se em obsessão.
Encarando a questão, porém,
por um ponto de vista bem pragmático, posso, perfeitamente, passar
sem ela. Não haverei de morrer de fome se algum dia resolver deixar
de escrever e se destruir tudo o que já escrevi. Aliás, as letras
nunca contribuíram para o meu sustento material e nem o da minha
família. Ganhei pouquíssimo dinheiro com elas e (desconfio) gastei
muito mais do que arrecadei com esse capricho pessoal, ao longo de
quatro décadas de produção.
Minha necessidade de escrever
(pelo menos textos considerados “literários”, portanto não me
refiro aos de caráter jornalístico e nem aos “comerciais” ou
filosóficos) não é profissional, no sentido em que esta palavra é
interpretada. É, todavia, mais profunda. É espiritual! É a forma
que conheço de detectar no subconsciente, de ordenar e de transmitir
idéias, observações e sentimentos, à minha maneira, a um número
incontável de pessoas, cuja maioria sequer conheço e certamente
jamais irei conhecer. É meu testemunho rigorosamente pessoal sobre
como interpreto essa misteriosa e magnífica aventura que é viver.
Qual, pois, a utilidade das
artes e, notadamente, da Literatura? Os supostos “práticos e
objetivos”, rotulados pelo “anjo pornográfico”, Nelson
Rodrigues, de “idiotas da objetividade” (Affonso Romano de
Sant’Anna escreveu instigante poema com este mesmo título),
entendem que, rigorosamente, não é nenhuma. Alguns ainda fazem uma
certa concessão e acham que, desde que bem vendida, ela pode render
alguns cobres a quem escreve e nada mais.
Em sentido diametralmente
oposto, há os que hipervalorizam a atividade da escrita. Defendem
que o talento de escrever representa a máxima manifestação de
inteligência e sensibilidade (isso, claro, quando os textos
produzidos são, de fato, inteligentes e sensíveis. Nem todos são).
Não é também por aí. Parte-se, como se vê, de um exagero a outro
e as duas correntes estão equivocadas. Neste caso, os extremos se
tocam. Conheço pessoas inteligentíssimas e extremamente sensíveis
que, no entanto, não sabem sequer desenhar uma letra “o”, quanto
mais redigir textos que reflitam sabedoria e emoção. E nem por
isso, óbvio, deixam de ser sábias e emotivas.
Há, ainda, os que preferem
ficar em cima do muro. Admitem que a literatura “pode”, sim, ter
grande utilidade prática, mas condicionam-na ao engajamento dos
escritores em alguma causa nobre e moralmente defensável. Ou seja,
querem que o talento da escrita seja, sobretudo, didático, quando
não uma espécie de instrumento de propaganda, para transmitir e
consolidar valores.
Estes apenas consideram a
atividade literária válida se defender, por exemplo, direitos
espezinhados por tiranos. Ou se denunciar opressões e opressores. Ou
se difundir valores fundamentais, como solidariedade, justiça,
fraternidade e verdade e tantos e tantos outros. Confundem-na,
portanto, com jornalismo ou algo que o valha.
Não nego que o escritor
possa, até, se prestar a tudo isso. Mas jamais por obrigação!
Aliás, sou visceralmente avesso a qualquer tipo de imposição, seja
de quem for e do que for. Isso tudo não pode e nem deve ser
colocado, portanto, como objetivo “sine qua non” da Literatura.
Não o é!
Defendo uma arte absolutamente
livre, quer de regras e normas (mesmo as lingüísticas), quer de
objetivos. Entendo que esta deva ser manifestação rigorosamente
espontânea, uma forma de comunicação direta de uma determinada
mente com outras tantas, não importa quantas.
O escritor, como todas as
demais pessoas, não conta (pelo menos não sempre) com certezas,
virtudes e verdades. Tem, também, como todo o mundo, dúvidas mil,
incontáveis vícios, contradições e defeitos. E para que seu texto
seja pelo menos verossímil, tem, isso sim, obrigação (consigo
próprio) de expressar, mas da forma que melhor lhe aprouver, tudo
isso.
O escritor britânico Ian
McEwan, ganhador do “Book Prize” de 1998, deu o seguinte
depoimento a propósito, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo,
publicada em 12 de dezembro daquele ano: “Ninguém duvida que as
palavras são símbolos, mas o entendimento transmitido por elas tem
a própria imediatice da percepção; porque a linguagem é um modo
de transmitir o pensamento de uma mente a outra. Conhecimento adiado,
é conhecimento perdido, porque a verdade existe num presente
perpétuo”.
Para mim, portanto, Literatura
é a livre transmissão de conhecimentos num “presente perpétuo”.
Tanto os próprios, ou seja, de quem a pratica, quanto os adquiridos
mediante leitura, conversas, observações etc. Este, no meu
entender, é seu principal e provavelmente único objetivo. Tudo o
mais que se disser a respeito é mera “conversa para boi dormir”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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