O “delito” da inocência
Pedro J. Bondaczuk
A qualidade de vida, em geral
– até daqueles povos atolados na absoluta miséria, sem acesso aos
bens mais comezinhos da civilização – melhorou, e bastante, neste
início do século XXI. Claro que poderia (e deveria) ser ainda muito
melhor, caso a vida não fosse encarada, apenas, como um “grande
negócio”, como mero “business”, e determinados valores, como
justiça, solidariedade e uma verdadeira assistência social (não
apenas esta de fachada. que vemos, amiúde, por aí) prevalecessem.
No aspecto mais nobre do Homo
Sapiens, o da razão, do raciocínio, da busca das grandes verdades e
da construção de uma sociedade minimamente equilibrada e sadia,
temo que houve enorme retrocesso. E é estranho que isso haja
ocorrido, se levarmos em conta as facilidades de locomoção, de
informação, de aprendizado e de comunicação (entre outras tantas)
que a tecnologia nos proporcionou.
Houvesse alguma máquina do
tempo, que permitisse que alguém, digamos do início do século XIX,
visitasse uma cidade moderna de hoje, como Nova York, Londres, Paris,
Roma, Rio de Janeiro ou São Paulo, qual seria a sua impressão?
Faria o possível e o impossível para permanecer por aqui, ou se
esforçaria para regressar à sua era, rapidinho, aterrorizado com
essa balbúrdia, violência, correria e superpopulação? Posso estar
enganado, mas creio que escolheria a segunda opção.
Claro que não de imediato.
Num primeiro momento, fascinado com as maravilhas que nem lhe
passavam pela cabeça no seu tempo e lugar, é provável que quisesse
ficar. Porém, com o passar dos meses (senão de meros dias),
sentiria a impossibilidade de se adaptar a esse tipo de vida. Rogaria
aos céus e infernos, aos deuses e aos seus santos, que lhe
permitissem voltar ao aconchego do seu mundinho medíocre, mas
tranqüilo (ou modorrento?) e lógico (ou alienado?).
Ninguém é tão burro a ponto
de negar o óbvio. A vida material da maioria das pessoas mundo afora
(até nos mais miseráveis guetos da África, Ásia e América
Latina) melhorou, e muito, notadamente a partir do início do século
XX, com as conseqüências da Revolução Industrial, deflagrada,
ainda, em meados do século XVIII. Não faz muito, as pessoas
privilegiadas, com acesso a tudo o que o dinheiro pode proporcionar,
viviam, quando muito, 60 anos em média. Isso, em países ricos.
No Terceiro Mundo (e na
ocasião, não havia esse tipo de distinção, mas o de colônias e
colonizadores) o indivíduo com 45 anos já era ancião. Poderia
festejar, e muito, se lograsse chegar aos 50. Não havia, por
exemplo, serviço público regular de saúde em lugar algum. Quem
podia, contratava um médico de família, que a assistia por
gerações. Quem não podia... morria, não raro, em conseqüência
de uma reles gripe, abandonado à própria desdita.
Ainda no século XIX, os
hospitais (raros) eram lugares destinados apenas para os miseráveis.
Ali, indigentes, sem nenhum recurso, eram confinados para morrer. Os
tratamentos, de fato, que podiam curar “algumas” doenças (e das
mais simples) só eram acessíveis aos que podiam pagar médicos
particulares. Os medicamentos, por seu turno, mais causavam
intoxicações de toda a sorte e agravavam os males mais banais, do
que exerciam qualquer ação terapêutica. Não existia sequer
arremedo de indústria farmacêutica.
Hoje, todavia, uma pessoa, por
paupérrima que seja, tem acesso aos sistemas públicos de saúde –
que, embora precários, existem até nos países mais atrasados e
carentes – quando precisar ou quiser “Ah, mas esses não
funcionam entre nós. Ademais, você precisa enfrentar imensas filas,
passar por vexames enormes face à má-educação de funcionários
despreparados e pode, até, morrer, enquanto espera atendimento”,
dirão os eternos críticos. E estão certos. Os ambulatórios,
centros de saúde e hospitais públicos, em boa parte do mundo, ainda
estão há anos-luz de distância do ideal.
Mas como era, por exemplo, há
cem anos? Esse sistema, de tantas deficiências e imperfeições,
sujeito a críticas e condenações de toda a sorte, sequer existia.
Coitado do pobre que ficasse doente! Agonizaria e em poucos dias
morreria de doenças de facílima cura, sem a mínima assistência.
Hoje é comum ver pessoas paupérrimas atingirem 65, 70 ou mais anos.
Há meio século, era uma raridade, praticamente um milagre.
Como se vê, em qualquer
aspecto que se encare, vive-se mais e melhor nesse início do século
XXI, em termos materiais, do que em qualquer outro período da
História. Faltam, porém, perspectivas, sonhos e ideais às pessoas.
A utopia socialista, por exemplo, “morreu”, face à desastrosa
experiência da União Soviética, em que a idéia de uma sociedade
sem classes, de direitos, deveres e oportunidades absolutamente
iguais, se transformou num horrendo pesadelo, num monstro disforme,
em uma ditadura estúpida e absurda, num Estado policial que conferia
ao ser humano o papel único de mera cifra estatística.
Vivemos na civilização da
“pressa” nessa malfadada era dita de “globalização”,
pós-comunismo (diria, pós-capitalismo de Estado, já que URSS,
China, Cuba, Coréia do Norte e países da extinta chamada “Cortina
de Ferro” nunca foram comunistas, na acepção rigorosa do termo).
“Time is money”, afirmam do alto da sua arrogância os
insensatos, que só pensam em ajuntar fortunas para que os
descendentes as esbanjem.
Confunde-se seriedade com
tensão e inocência com tolice. Daí os consultórios de
psiquiatras, psicólogos e psicanalistas andarem tão abarrotados de
clientes à procura de panacéias para seus males, que só eles
poderiam curar. Vive-se muito mais (como vimos acima), atualmente, do
que há algum tempo, mas é uma vida cinzenta, alienada, vazia, sem
objetivos, sem perspectivas e sem qualidade.
Bertolt Brecht constatou,
atônito, sobre a realidade de hoje, nestes versos do poema “Aos
que vierem depois de nós”:
“Realmente, vivemos muito
sombrios!
A inocência é loucura. Uma
fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele
que ri
ainda não recebeu a terrível
notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes?!”.
Sim, amigos, que tempos são
estes?!
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