Desenho sem borracha
Pedro J. Bondaczuk
A nossa vida é balizada por
determinados acontecimentos externos, que nada têm a ver diretamente
conosco e isso ocorre, principalmente, quando eles coincidem com
momentos pessoais, positivos ou negativos, que se fixam em nossa
lembrança. À nossa revelia, incorporam-se, de vez, a nossas
biografias, mesmo que estas jamais venham a ser escritas. Caso o
sejam, tais fatos são, invariavelmente, lembrados por nossos
biógrafos e associados àqueles episódios que nos dizem respeito
diretamente.
Por exemplo, não consigo
dissociar a destruição das torres gêmeas do World Trade Center, em
Nova York, ocorrida em 11 de setembro de 2001, de uma ocorrência
pessoal muito sofrida e angustiante. Uma semana antes desse incrível
atentado, eu havia sofrido um acidente doméstico dos mais bestas.
Tive uma queda, que resultou na “trinca” da cabeça do fêmur da
perna esquerda.
Como, na oportunidade, eu já
não era tão novinho assim, a aflição (minha e da família) era
imensa. Permaneci dois dias internado em um hospital aqui de
Campinas. Os médicos queriam fazer uma operação, para colocar
parafusos no osso fraturado e assim garantir sua consolidação.
Contudo, eu havia tido acesso às radiografias. E estas mostravam que
a trinca era muito discreta, quase que apenas um imperceptível
“risquinho” na cabeça do fêmur. Opus-me, portanto,
veementemente, a tal cirurgia.
Fizeram-me assinar um termo de
responsabilidade (o que fiz, sem susto ou hesitação) e liberaram-me
para voltar para casa. Eu teria que permanecer por algumas semanas
com peso no pé, para que o osso ficasse no lugar correto e pudesse
se consolidar sem problemas.
Avesso a medicamentos,
suportei a dor “a seco”. E garanto que não era das mais
pequenas. No dia do atentado, eu estava com a TV a cabo ligada, logo
de manhã (embora não costume, e nem possa, assistir televisão
nesse período), pois na noite anterior, o então prefeito de
Campinas, Antonio da Costa Santos, havia sido assassinado, num caso
que até hoje carece de explicações plausíveis.
A todo o momento a TV trazia
flashes do velório e das investigações policiais. De repente,
surgiu na telinha a imagem de um avião de passageiros chocando-se,
espetacularmente, contra uma das torres gêmeas do World Trade
Center. Pensei, distraído, que se tratasse de trailler de um desses
tantos filmes de catástrofe, dos quais a imaginação dos produtores
de Hollywood é fartíssima. Não tardou, porém, para que percebesse
que a ocorrência era real.
Minutos depois, um segundo
avião chocou-se com a torre que havia ficado intacta no primeiro
choque. O coração veio parar na minha boca. Fui tomado de horror
com o que estava acontecendo e com as notícias complementares dando
conta de que o Pentágono também havia sido parcialmente destruído
e de que uma nova aeronave se dirigia a Washington, provavelmente
para arrasar a Casa Branca.
O trauma completou-se quando
as duas torres gêmeas vieram abaixo, num turbilhão de poeira e de
fumaça, como se fossem frágil castelo de cartas. Desde então,
associo, em meu subconsciente, até automaticamente, os dois fatos: a
dor que sentia no momento em decorrência da fratura e o
desmoronamento do World Trade Center.
Recuperei-me por completo do
acidente sem que ficasse nenhuma seqüela. Mas sempre que penso num
desses dois fatos, o outro vem, imediatamente, à memória. Embora
sem a mínima relação um com o outro, ambos ficaram, para sempre,
associados um ao outro em minha lembrança.
Felizmente, esse tipo de
associação também ocorre com eventos positivos. Por exemplo,
recebi o sim, da minha primeira namorada (oficial), à minha proposta
de namoro, no dia exato da inauguração de Brasília, ou seja, em 21
de abril de 1960. O fato (para mim, na época, dos mais auspiciosos),
ocorreu na Fonte Sônia, em Valinhos, onde a escola em que estudava
fazia piquenique nesse tão aprazível local. A declaração (e o
conseqüente sim) ocorreram no interior de um barco, no qual ambos
navegávamos, numa espécie de lago artificial ali existente.
Romântico, não é mesmo?
O evento completou, em 2010,
meio século, assim como este momento marcante em minha vida. Ambas
as ocorrências estão indelevelmente associadas em minhas
lembranças, sem ter, contudo, a mínima relação uma com a outra.
Brasília, aliás, tem
importância muito especial para mim. Meu saudoso pai, que era mestre
de obras, participou da epopeia que foi a sua construção. Há,
pois, muito da participação dos Bondaczuk na sua existência. Sinto
que a cidade é um pouco minha também (embora, claro, não o seja).
Pensando em tudo isso,
concluo, como fez Millôr Fernandes (êta sujeitinho inteligente!):
“Viver é desenhar sem borracha”. E não é?!! É verdade que não
podemos apagar os erros que cometemos, os sofrimentos que tivemos, os
fracassos que nos abateram etc. Em contrapartida, porém, ninguém
pode, igualmente, suprimir, como num passe de maligna mágica, as
experiências gratificantes e inesquecíveis pelas quais passamos,
que se tornam nosso mais precioso patrimônio pessoal enquanto
tivermos um sopro que seja de vida.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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