A condição humana

Pedro J. Bondaczuk

O conceito de bondade (assim como o de maldade) é um tanto ambíguo. Geralmente, é mal interpretado pelos estudiosos do comportamento. É definido sem muita precisão por filósofos, psicólogos, escritores, clérigos das mais diversas religiões e por outros tantos intelectuais, que têm no ser humano o seu foco. É confundido com benemerência, com consciência social ou com piedade.

A caridade (uma das manifestações de bondade, mas não necessariamente a própria), tida como uma das virtudes cardeais que os homens deveriam cultivar, está em baixa, nos dias atuais, em boa parte do mundo. Vivemos numa civilização consumista, caracterizada pela ostentação e pelo desperdício, marcada, sobretudo, por todos os tipos de violência e por um individualismo exacerbado.

Tudo funciona na base do "cada um por si". Ou do famigerado desejo de "levar vantagem em tudo". Felizmente, para todos, há exceções, que merecem ser, quando não exaltadas – para que o bom exemplo possa se reproduzir, multiplicar e frutificar – ao menos imitadas, mesmo que parcialmente.

Sei que miséria não é um assunto agradável para ninguém escrever, ler ou conversar. Todavia, há muitas pessoas que fazem dela matéria-prima do próprio sucesso. Não no intuito de lhe pôr fim, o que seria um enorme bem, mas no de somente auferir alguma vantagem pessoal, qualquer uma (em termos de prestígio, por exemplo) com ela. E põe muitas nisso!

Os que agem dessa maneira, via de regra, são, notadamente, alguns políticos cínicos, que não têm noção exata do significado dessa nobre atividade, à qual exercem apenas em próprio proveito. E também determinados “intelectuais”, que exploram o tema de maneira recorrente, mas sem nunca apontar soluções para o problema que, na verdade, não desejam ver solucionado.

A miséria, todavia, (claro) é infinitamente mais desagradável para as pessoas que, por circunstâncias fortuitas da vida, caíram nesse abismo (do qual são incapazes de sair) do que para eventuais leitores ou nossos interlocutores em qualquer conversa.

O indivíduo bom, não sai por aí apregoando a sua bondade. Aliás, sequer sabe que o é. Quem afirma isso nem sou eu, mas é Hannah Arendt, no livro “A condição humana”. A notável filósofa constata: “A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz. Quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou um zeloso integrante de uma igreja”.

Existem pessoas assim, com tamanha nobreza e modéstia, num mundo em que a maioria aspira à fortuna, à possibilidade de ostentação e à celebridade? Existem! Conheço alguém, com quem tenho estreitíssimo relacionamento, que se encaixa, a caráter, no figurino proposto por Hannah Arendt. Se a quiserem ver irritada, comentem seus atos de generosidade e altruísmo. Ela não admite que sequer se mencione o assunto.

Despende, mensalmente, no mínimo 30% da renda familiar (que não é lá essas coisas), em mensalidades a instituições de caridade, como asilos, orfanatos etc. E esse valor nunca é abatido no Imposto de Renda, pois jamais pediu recibo. Essa ajuda, que considera irrisória, é absolutamente espontânea e anônima. Eu mesmo descobri isso há poucos dias. Claro, não comentei nada, sabendo qual seria sua reação.

Embora se oponha (creio que só da boca para fora) a que se dêem esmolas, nenhum pedinte jamais saiu de perto dela de mãos vazias. Finge severidade, faz sermões, de sobrolho carregado, pelo fato da pessoa ser alcoólatra ou fumar e, quando ninguém percebe, enfia na mão de quem pede notas amassadas, que nunca são meros trocados.

Não raro, são quantias até consideráveis. Se a pessoa que pede o faz no portão de sua casa, sempre sai bem. Ganha, invariavelmente, alguma roupa em ótimo estado, ou calçado pouco usado, ou outra coisa qualquer, que tenha utilidade.

Chegou ao cúmulo de, numa ceia de Natal, em presença da família (alguns parentes são metidos a ricos), convidar um mendigo a sentar-se à mesa. Foi um escândalo! Todos interpretaram seu gesto como mero ato de rebeldia, destinado, apenas, a chocar os convidados. Ou seja, além de tudo, ainda passou por vilã. Sei que sua intenção não foi essa, mas não lhe disse nada. Tenho certeza de qual seria a sua reação.

Inúmeras vezes levou pessoas da vizinhança, que mal conhecia de vista, ao médico, em seu carro, como se fosse sua estrita obrigação. Encaminhou muitos, que tinham direito à aposentadoria por invalidez, ao INSS, e providenciou toda a documentação, sem cobrar um único centavo. E ai de quem sequer insinuasse em lhe pagar! E nunca tocou nesses assuntos com quem quer que fosse.

Sua postura é sempre sóbria, séria, circunspecta até. Não é daquelas pessoas que trazem sempre no semblante aquele ar de beatitude, aquela aura de santidade que de fato não têm e que adotam posturas como se fossem a própria Madre Teresa de Calcutá. Pelo contrário. Jamais ostentou bondade. É boa, contudo sequer sabe disso. Em tempo: não se trata de uma pessoa religiosa, não, pelo menos, da forma que a maioria encara a religião.

Sua preocupação pelos animais, então, é comovedora! “Adotou”, por exemplo, uma dúzia de gatos vadios, o que lhe tem valido, até, atritos com os vizinhos. Outro dia, ela foi me buscar no serviço, tarde da noite (alta madrugada, pois horário de editor é sempre dos mais perversos). No trajeto para a minha casa, viu um cão perdido, sedento e faminto, a perambular por uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Estava um frio siberiano e o movimento, àquela altura, era quase nulo, propício para um assalto.

Não teve dúvidas: parou o carro – correndo o risco de ser assaltada, numa cidade violenta, como é Campinas atualmente – e acolheu, carinhosamente, o indefeso animalzinho. Chegando em casa, alimentou-o e propiciou-lhe abrigo. No dia seguinte, a contragosto, encaminhou-o à Associação Protetora dos Animais, já que a família se opôs, com veemência, a que ficasse com ele.

O leitor, cético, a essa altura pode estar se perguntando: “Como esse cara sabe tanto a respeito dessa pessoa?”. Simples! Tenho a honra e o privilégio de conviver com ela (entre namoro, noivado e casamento), há inigualáveis 51 anos! É o meu contraponto, meu “outro lado”, meu ponto de equilíbrio. É, claro, muito mais do que isso. É, sobretudo, o mais precioso e intransferível presente que a vida me outorgou!.

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