O brasileiro redescobre a negociação
Pedro J. Bondaczuk
O plano de estabilização
econômica brasileiro começa a enfrentar as primeiras dificuldades.
Não no que se refere a preços no varejo, já que a atuação dos
fiscais do presidente José Sarney, o povo, está revelando uma
extraordinária eficiência. Todavia, não se sabe se por obra e
graça de eventuais sabotadores das medidas, ou se em decorrência da
compra exagerada de alguns consumidores mais afoitos, o fato é que
algumas mercadorias já estão desfalcadas em supermercados e em
outras casas de comércio.
É necessário, e
indispensável, que o fato mereça a máxima atenção das
autoridades, principalmente para evitar a criação de um nefasto
mercado negro, que tenderia a arruinar pelo menos parte do sucesso
que se espera dessa cruzada nacional contra a inflação.
É verdade que vivemos, ainda,
todos nós, aquele período de ajustamento à nova realidade, depois
de termos sido colhidos pela perplexidade diante da corajosa
providência governamental. Muitos setores ainda estão negociando a
divisão da inflação futura, embutida nos custos de algumas
matérias-primas e insumos industriais e que não poderá, em
hipótese alguma, ser repassada no preço final ao consumidor.
Aliás, essas negociações
são outro ponto positivo do plano de estabilização. O que se via,
até aqui, era a pura e simples imposição nas atividades de troca
de mercadorias e serviços. Algum gerente cismava, da noite para o
dia, que as tabelas de sua empresa teriam que ser reajustadas na
manhã seguinte.
O cliente, assim que se
dispunha a fazer um novo pedido, recebia, apenas, a informação de
que teria de pagar mais pelo produto, sem que fosse consultado a
respeito. Era na base do pegar ou largar. É claro que pegava, pois
tinha a garantia de repassar esse algo a mais que estava pagando para
o indefeso consumidor final, muitas vezes acrescentando alguns
pontinhos percentuais a título de “arredondamento”.
Esse procedimento relegou ao
esquecimento a negociação, que se tornou coisa do passado. Aliás,
a própria prática comercial em si implica num autêntico jogo de
pôquer, nessa mútua tentativa de se lucrar na compra e venda de
mercadorias. Isso é salutar, saudável, a alma e a essência do
comércio. Não é à-toa que este é também conhecido por
“negócio”. Ou seja, algo discutido, disputado, transacionado e
acordado.
Mas a voracidade inflacionária
e a certeza de que sempre havia alguém para pagar a conta final de
tal desarranjo econômico, estava colocando fora de moda essa
indispensável prática. É intenção do governo (e isto está
implícito no decreto do plano de estabilização) que o processo
negociador se estenda, também, a salários. Como, por sinal, já
aconteceu no passado.
É evidente que para isso se
realizar sem distorções, é necessário que as duas partes tenham
forças equivalentes. Não é todo o dia que o pequenino Davi
consegue abater o gigantesco Golias. Esse é um fato raro e a regra é
o forte esmagar o fraco. E isso, evidentemente, não é negociação,
mas sim, imposição.
Tudo é possível de ser
negociado, desde que se estabeleçam regras mínimas e justas e que
estas sejam respeitadas. Claro que é preciso, também, um árbitro
para fiscalizar o seu cumprimento. As vantagens eventualmente
conseguidas num processo dessa natureza são as mais legítimas
possíveis e deixam de ser objetos de qualquer contestação.
As dificuldades do plano
governamental, certamente, não ficarão restritas apenas ao que foi
assinalado acima. As autoridades da área econômica estão
perfeitamente conscientes disso e não foi um ato de pessimismo a
afirmação, feita anteontem, pelo ministro do Planejamento, João
Sayad, de que os problemas maiores estão, ainda, para acontecer.
Um longo retrospecto
inflacionário, de quase um século, não se apaga com um simples
decreto. Há todo um condicionamento a ser extirpado. Uma geração
inteira aprendeu a raciocinar em termos da evolução da inflação.
E nos últimos 22 anos, a chamada correção monetária, em boa hora
morta e sepultada (sem deixar qualquer saudade para a maioria dos
brasileiros) desligou as pessoas ainda mais da realidade.
Entretanto, os obstáculos que
certamente haverão de aparecer, não assustam mais a população,
que se conscientizou, finalmente, que depende dela, e tão somente
dela, o futuro deste país. Doravante, qualquer um que quiser
remarcar os seus preços, mesmo depois que o congelamento atual
acabar, vai ter que apresentar argumentos muito fortes para
justificar esta prática.
O mesmo raciocínio valerá
para o governo, que ficou com a sua responsabilidade de ser mais
austero e prudente, triplicada. Os “trens da alegria”, em
períodos que precedem e sucedem as eleições, serão muito mais
questionados. A sociedade vai cobrar, com empenho redobrado,
eficiência nos serviços públicos.
A nova mentalidade terá,
necessariamente, que contaminar, também, as autoridades. Isso pode
parecer até uma utopia, mas as grandes conquistas humanas partiram
de pressupostos a princípio julgados impossíveis. Se não
acreditassem em seus sonhos, os homens jamais chegariam à Lua, nem
passeariam no espaço ou fotografariam o núcleo de um cometa.
(Artigo publicado na página
2, Opinião, do Correio Popular, em 16 de março de 1986)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment