Friday, June 30, 2017

O brasileiro redescobre a negociação



Pedro J. Bondaczuk


O plano de estabilização econômica brasileiro começa a enfrentar as primeiras dificuldades. Não no que se refere a preços no varejo, já que a atuação dos fiscais do presidente José Sarney, o povo, está revelando uma extraordinária eficiência. Todavia, não se sabe se por obra e graça de eventuais sabotadores das medidas, ou se em decorrência da compra exagerada de alguns consumidores mais afoitos, o fato é que algumas mercadorias já estão desfalcadas em supermercados e em outras casas de comércio.

É necessário, e indispensável, que o fato mereça a máxima atenção das autoridades, principalmente para evitar a criação de um nefasto mercado negro, que tenderia a arruinar pelo menos parte do sucesso que se espera dessa cruzada nacional contra a inflação.

É verdade que vivemos, ainda, todos nós, aquele período de ajustamento à nova realidade, depois de termos sido colhidos pela perplexidade diante da corajosa providência governamental. Muitos setores ainda estão negociando a divisão da inflação futura, embutida nos custos de algumas matérias-primas e insumos industriais e que não poderá, em hipótese alguma, ser repassada no preço final ao consumidor.

Aliás, essas negociações são outro ponto positivo do plano de estabilização. O que se via, até aqui, era a pura e simples imposição nas atividades de troca de mercadorias e serviços. Algum gerente cismava, da noite para o dia, que as tabelas de sua empresa teriam que ser reajustadas na manhã seguinte.

O cliente, assim que se dispunha a fazer um novo pedido, recebia, apenas, a informação de que teria de pagar mais pelo produto, sem que fosse consultado a respeito. Era na base do pegar ou largar. É claro que pegava, pois tinha a garantia de repassar esse algo a mais que estava pagando para o indefeso consumidor final, muitas vezes acrescentando alguns pontinhos percentuais a título de “arredondamento”.

Esse procedimento relegou ao esquecimento a negociação, que se tornou coisa do passado. Aliás, a própria prática comercial em si implica num autêntico jogo de pôquer, nessa mútua tentativa de se lucrar na compra e venda de mercadorias. Isso é salutar, saudável, a alma e a essência do comércio. Não é à-toa que este é também conhecido por “negócio”. Ou seja, algo discutido, disputado, transacionado e acordado.

Mas a voracidade inflacionária e a certeza de que sempre havia alguém para pagar a conta final de tal desarranjo econômico, estava colocando fora de moda essa indispensável prática. É intenção do governo (e isto está implícito no decreto do plano de estabilização) que o processo negociador se estenda, também, a salários. Como, por sinal, já aconteceu no passado.

É evidente que para isso se realizar sem distorções, é necessário que as duas partes tenham forças equivalentes. Não é todo o dia que o pequenino Davi consegue abater o gigantesco Golias. Esse é um fato raro e a regra é o forte esmagar o fraco. E isso, evidentemente, não é negociação, mas sim, imposição.

Tudo é possível de ser negociado, desde que se estabeleçam regras mínimas e justas e que estas sejam respeitadas. Claro que é preciso, também, um árbitro para fiscalizar o seu cumprimento. As vantagens eventualmente conseguidas num processo dessa natureza são as mais legítimas possíveis e deixam de ser objetos de qualquer contestação.

As dificuldades do plano governamental, certamente, não ficarão restritas apenas ao que foi assinalado acima. As autoridades da área econômica estão perfeitamente conscientes disso e não foi um ato de pessimismo a afirmação, feita anteontem, pelo ministro do Planejamento, João Sayad, de que os problemas maiores estão, ainda, para acontecer.

Um longo retrospecto inflacionário, de quase um século, não se apaga com um simples decreto. Há todo um condicionamento a ser extirpado. Uma geração inteira aprendeu a raciocinar em termos da evolução da inflação. E nos últimos 22 anos, a chamada correção monetária, em boa hora morta e sepultada (sem deixar qualquer saudade para a maioria dos brasileiros) desligou as pessoas ainda mais da realidade.

Entretanto, os obstáculos que certamente haverão de aparecer, não assustam mais a população, que se conscientizou, finalmente, que depende dela, e tão somente dela, o futuro deste país. Doravante, qualquer um que quiser remarcar os seus preços, mesmo depois que o congelamento atual acabar, vai ter que apresentar argumentos muito fortes para justificar esta prática.

O mesmo raciocínio valerá para o governo, que ficou com a sua responsabilidade de ser mais austero e prudente, triplicada. Os “trens da alegria”, em períodos que precedem e sucedem as eleições, serão muito mais questionados. A sociedade vai cobrar, com empenho redobrado, eficiência nos serviços públicos.

A nova mentalidade terá, necessariamente, que contaminar, também, as autoridades. Isso pode parecer até uma utopia, mas as grandes conquistas humanas partiram de pressupostos a princípio julgados impossíveis. Se não acreditassem em seus sonhos, os homens jamais chegariam à Lua, nem passeariam no espaço ou fotografariam o núcleo de um cometa.

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 16 de março de 1986)



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