Enxergando "além" do real
Pedro J. Bondaczuk
Os escritores em geral e os
poetas em particular têm uma visão mais aguçada do futuro do que
as pessoas (digamos) “comuns”. Ao contrário da idéia geral que
se faz desses artífices da palavra, seres inspirados, "cúmplices
dos deuses", eles não estão alheios à realidade que os cerca.
Muito pelo contrário. Em virtude de um dom natural de que são
dotados, conseguem enxergar muito além do real, projetando a
realidade para adiante, muito adiante do seu tempo.
Assim foi, como tantos outros,
o mineiríssimo Carlos Drummond de Andrade. Poucas pessoas no Brasil
conseguiram ver com tanta agudeza os problemas sociais que afetavam
(e afetam mais do que nunca) nossa população, como ele. Os
contrastes que nos caracterizam, as contradições que nos dominam, o
nosso jeito peculiar, um tanto moleque de ser, que tem facetas boas e
ruins, jamais escaparam da sua aguçada "visão de raio x".
Drummond sempre foi tido como
um sujeito sisudo, de poucas palavras, duro como o minério de ferro
da sua Itabira natal. Mas por trás daquela carapaça de severidade,
havia um coração brando e terno. Atuava um cérebro preocupado com
os desajustes sociais deste país que ele tanto amava. Era lúcido em
suas observações. Era objetivo em suas colocações. E era,
sobretudo, humano na avaliação das fraquezas, próprias e alheias.
Isto é característico dos
poetas, dos escritores em geral, videntes por excelência. Afinal, ao
contrário do que se imagina, são eles que usufruem plenamente da
existência. O iluminado autor de "Recherches du temps perdu",
o imortal Marcel Proust, escreveu, a propósito: "A verdadeira
vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida por
conseguinte realmente vivida, é a literatura".
Mas a arte de sonhar, de
elucubrar, de gerar imagens mediante o uso do instrumento da palavra,
tem um sentido essencialmente prático, embora não pareça. Quem
constatou isso foi o "pai" das viagens espaciais, o russo
Konstantin Tsiolkowski, um dos primeiros homens a acreditarem
realmente que o ser humano poderia viajar no espaço, antes mesmo da
invenção do avião, e que desenvolveu toda uma teoria acerca de
como isso seria possível. Afirmou: "A princípio, surge a
idéia, a fantasia, o conto. Depois deles, o cálculo científico. E
então, os homens práticos tornam a idéia real".
Num país como o nosso,
virtualmente sem memória, nunca é demais, portanto, a lembrança do
nosso poeta maior. Até para que, no futuro, os que vierem a falar
dele (e oxalá falem, de fato), se lembrem de seus poemas magistrais,
de seus saborosos contos e de suas crônicas de refinado humor
publicadas nos mais importantes jornais brasileiros e não digam,
somente, que se tratou do homem que emprestou a sua imagem para a
efígie estampada na efêmera cédula de NCz$ 50,00, lançada em um
dos tantos e fracassados planos econômicos destinados a conter um
processo hiperinflacionário que parecia incontrolável, que circulou
entre 17 de março de 1989 e 30 de setembro de 1992 e que a imensa
maioria dos brasileiros sequer sabe que existiu.
Que Drummond seja lembrado, em
um século vindouro, ou, quem sabe, em um próximo milênio (supondo
que a Terra e seus habitantes ainda existam e que não tenham sido
destruídos e que haja, sobretudo, um Brasil, e que seja melhor do
que este atual, com um povo mais generoso e feliz), por exemplo, por
poemas como este “Nota social” (entre centenas de tantos outros
que ele nos legou):
“O trem chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da
Terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música.
Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu
de palha.
Máquinas fotográficas
assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio
público
(melhoramento da atual
administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que
ninguém vê,
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que
ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador,
o poeta sobe,
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico”.
Lindo, não é verdade?
Simples e belo! Essa é a forma justa, eficaz e sábia de reverenciar
a genialidade de nosso poeta maior. Ou seja, não permitindo que sua
obra se perca irreversivelmente no tempo, mas que sobreviva ao tempo
e ao esquecimento como patrimônio artístico e cultural de um povo
que ele tanto amou. Pois como ele próprio escreveu, talvez prevendo
ser esquecido: “O poeta está melancólico...” Pudera!
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