O
mais democrático dos sentimentos
Pedro
J. Bondaczuk
A
vaidade é, digamos, o “mais democrático” dos nossos
sentimentos. Não conheço uma única pessoa que não se sinta
vaidosa por algum motivo: pela suposta beleza, pela inteligência,
pela cultura, pela esperteza e até, por paradoxal que pareça, pela
sua alegada modéstia, etc.etc.etc. Milhares de etceteras.... É
verdade que muitos exageram na dose e, como tudo o que é demais,
caem em ridículo, mesmo que não se apercebam. Entendo que, se não
for exagerada, trata-se de um “pecadilho” menor, tolerável,
digamos, de um pecado venial que nem merece tanta condenação.
Afinal, quem somos nós para julgar a vaidade alheia? Ela também é
chamada, a meu ver impropriamente, de “orgulho, ostentação,
presunção, futilidade, algo sem valor, soberba ou amor próprio”.
E
no que ela consiste? No fundo, no fundo não passa do profundo desejo
de atrair a admiração das outras pessoas. Quem nunca pretendeu
isso?Da minha parte, não nego, esse é um empenho constante. O
indivíduo vaidoso (diria, todos nós) cria (às vezes com
fundamento, mas nem sempre) uma imagem pessoal exclusivamente para
transmiti-la aos outros. A finalidade é, logicamente, a de ser
admirado e invejado.
A
escritora inglesa do século XVIII, Jane Austen, observa o seguinte
sobre esse sentimento: “A vaidade e o orgulho são coisas
diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como
sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho
relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a
vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós”.
Concordo com a observação dessa mulher talentosa e inteligente, que
tinha, como principal característica, a ironia que utilizava para
descrever seus personagens. Por isso, não estranho o fato dela ser
incluída entre os clássicos da Literatura da terra de William
Shakespeare.
A
mesma diferenciação feita por Jane Austen, posto que mais
detalhada, podemos encontrar em um texto não tão conhecido de
Fernando Pessoa, incluído no livro “Da literatura européia”. O
original escritor dos heterônimos escreveu a propósito: “O
orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito;
a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso
próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser
vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser —
pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso. É
difícil à primeira vista compreender como podemos ter consciência
da evidência do nosso mérito para os outros, sem a consciência do
nosso próprio mérito”.
E
Pessoa conclui assim sua arguta observação: “Se a natureza humana
fosse racional, não haveria explicação alguma. Contudo, o homem
vive a princípio uma vida exterior, e mais tarde uma interior; a
noção de efeito precede, na evolução da mente, a noção de causa
interior desse mesmo efeito. O homem prefere ser exaltado por aquilo
que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a
vaidade em ação”. E não é?! O (sem favor algum) mais completo
estilista de língua portuguesa, padre Antonio Vieira, classifica a
vaidade como um “vício” (o que, de fato, é). Compara-a,
metaforicamente (ele que foi um mestre da metáfora) a um astuto
pescador, sempre à espreita para enganar com sua isca um peixe, para
assim pescá-lo. Disse, em um de seus tantos memoráveis sermões: “A
vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais
facilmente engana os homens”. E como engana!
A
Literatura trata (e sempre tratou) extensamente desse tema. Afinal,
trata-se, ao fim e ao cabo, de alguém escrevendo sobre alguém para
outro alguém ler. E, como William Shakespeare observou, em certa
ocasião: “Nenhum assunto interessa mais o homem do que o próprio
homem”. Ouso afirmar que não existe nenhum livro, seja de que
época ou de que gênero for, que não aborde a vaidade em algum de
seus tantos aspectos, mesmo que indiretamente. E isso vale tanto para
ficção quanto para não ficção. Para poesia ou prosa. Para
Filosofia, Antropologia, Sociologia e vai por aí afora. Tratarei,
oportunamente, de alguns livros e autores que trouxeram á baila esse
polêmico e recorrente assunto.
Por
hoje, encerro estas descompromissadas reflexões com este poema de
Florbela Espanca intitulado (e não poderia deixar de ser) de
“Vaidade”:
“Sonho
que sou a Poetisa eleita,
Aquela
que diz tudo e tudo sabe,
Que
tem a inspiração pura e perfeita,
Que
reúne num verso a imensidade!
Sonho
que um verso meu tem claridade
Para
encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo
aqueles que morrem de saudade!
Mesmo
os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho
que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela
de saber vasto e profundo,
Aos
pés de quem a terra anda curvada!
E
quando mais no céu eu vou sonhando,
E
quando mais no alto ando voando,
Acordo
do meu sonho... E não sou nada!”.
A
vaidade, como se vê, é mesmo, sem dúvida, o “pescador astuto”,
citado por Vieira, sempre à espreita, pronto para nos enganar e para
nos fisgar como ingênuos peixes que somos....
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